A usina nuclear de Chernobyl é uma de várias que alimentam a União Soviética com energia. Localizada na Ucrânia, perto da cidade de Pripyat, a usina parece operar em um dia como qualquer outro. Os funcionários da madrugada chegam para seu turno, trabalhando sem nenhuma preocupação em especial até que um grande estrondo coloca todos em alerta e em pânico subseqüente. Ninguém sabe o que aconteceu exatamente, apenas que houve um terrível acidente com o Reator 4. Um grande incêndio domina as instalações da usina e os bombeiros chegam para resolver, mas logo eles e outras pessoas começam a demonstrar sinais de envenenamento por radiação. As autoridades soviéticas não demoram para se envolver, recrutando os talentos do diretor de um instituto de energia nuclear, Valery Legasov (Jared Harris), e de Boris Shcherbina (Stellan Skarsgård), um partidário, para investigar e solucionar um problema que pode ser fatalmente irreversível.
Evitando estigmas negativos do conteúdo.
Todos sabem um pouco sobre o acidente nuclear de Chernobyl. Não é um dos acontecimentos mais marcantes das aulas de história geral como a república romana ou as guerras mundiais e, mesmo assim, uma parte da história se sabe. Alguns podem conhecer apenas as histórias de fantasma envolvendo as cidades abandonadas e os horrores que ainda aterrorizam o lugar, as almas que pereceram lá e nunca abandonaram o lugar onde passaram a vida inteira. Lendas urbanas falam sobre mutações a partir do contato com radiação e outras pessoas apenas conhecem o que foi dito em trabalhos de ficção ambientados no local. E a verdade, qual é? Em 2019, desinformação sobre o assunto não é exatamente uma realidade porque muitos inquéritos foram realizados no passado e a própria União Soviética já não existe mais para tentar esconder seus segredos, então não é como se essa minissérie estivesse revelando segredos nunca antes vistos. Pode-se dizer que revelou informações pouco conhecidas de forma dinâmica, coesa e numa narrativa que nunca esquece do fator entretenimento. Já é um mérito gigantesco por si.
Organizar os fatos e apresentá-los em quantidade balanceada é uma tarefa mandatória. Muitas informações, personagens, detalhes e minúcias facilmente poderiam desorientar o espectador sem o luxo de vários episódios para tornar familiar um elenco de muita gente. São apenas cinco episódios de mais ou menos 1 hora no total, o que também não justifica uma insuficiência de informação porque não deixa de ser como um filme de 5 horas. Há uma boa margem para incluir o necessário para contar a história e responder suas perguntas: O que aconteceu em Chernobyl? O que causou o acidente? Como ele foi resolvido? Quais as conseqüências? É bastante coisa para explicar e uma armadilha e tanto para fazer do seriado uma avalanche de fatos em ritmo jornalístico, friamente e em seqüência para priorizar apenas a clareza. Também há o risco de dar um ar de documentário para a obra, algo que já foi feito aos montes ao longo dos anos.
O conteúdo praticamente pede por um infográfico explicando propriedades químicas dos elementos presentes num reator nuclear, de uma simulação em 3D malfeita mostrando a possível área de contaminação das nuvens tóxicas da explosão. Se documentários de televisão forem incluídos, fica ainda mais fácil imaginar a exposição barata com um narrador falando exatamente o que aconteceu sem emoção alguma. E é provável que o grande público imaginaria qualquer coisa relacionada ao acidente apresentada mais ou menos nos jeitos mencionados. Qualquer produção de grande escala chamaria a atenção para si. Uma feita pela emissora de melhor reputação atual e com um orçamento farto, então, garantiria ao menos uma divulgação ampla no pior dos casos e popularidade explosiva no melhor deles. Este é o melhor deles. Parte do alarde se deu por conta de notícias a respeito da minissérie entrar para os seriados com maior nota no IMDb — na escrita desse texto, apenas “Planet Earth” I e II e “Band of Brothers” estão acima de “Chernobyl” no ranking. Talvez todos os temores a respeito sobre ser um pseudodocumentário tenham morrido com isso.
Fidedignidade aliada ao drama.
Não vou negar que minha empolgação nasceu com um misto das pessoas falando sem parar sobre como essa é uma das melhores minisséries que elas já viram e as notas altíssimas em todo lugar. Por que diabos tanta gente se interessava por um assunto já esmiuçado e nunca muito popular? Tratando de eventos históricos, o interesse normalmente recai sobre revoluções, guerras e outras coisas. Basta ver o primeiro episódio para entender os motivos por trás de tanto alarde. A grande diferença entre “Chernobyl” e outros similares é que a proposta de dramatizar os eventos retira o filtro seco e sem sal de uma análise de dados e reportagem de eventos. Isso é típico de qualquer trabalho de ficção, mas nem todos têm sucesso porque falta uma direção colocando o espectador diretamente dentro dos eventos retratados. É exatamente isso que Johan Renck, diretor de todos os cinco episódios, faz desde os primeiros momentos. Os operários estão em seus lugares, há um painel com mais botões que uma ficção científica exagerada colocaria e então um estrondo. Pânico. Indecisão. Desespero. Medidas drásticas. Nem o espectador sabe o que está acontecendo ao certo, mas ele descobrirá em breve.
De um lado, a recriação da época em um nível micro e macro, dos cenários marcantes como a usina destroçada em chamas até os detalhes de figurino e ambientes menores, traz o ar de verdade que faz tanta diferença sem deixar isso imediatamente evidente. Não é necessariamente o orçamento, pois o dinheiro é usado para outras coisas mais importantes que exacerbar a tecnologia de efeitos especiais, por exemplo. O que se vê em “Chernobyl” é a dedicação explícita do design de produção colocada em bom uso pela direção, que, por sua vez, segue os caminhos do roteiro e mostra com quantos lados se faz uma tragédia. Há o povo simples e ignorante ao perigo, os bombeiros que atenderam ao chamado imediatamente, a ajuda de fora, os cientistas, os operários e até mesmo os engravatados enviados de Moscou. São muitos focos respeitosamente apresentados e, todavia, o destaque recai em três atores de participação mais ativa: Jared Harris, Stellan Skarsgård e Emily Watson. Três escolhas e três acertos sem margem para críticas. Basta dizer que cumprem as demandas com folga.
Exposição inteligente.
Mesmo assim há muita coisa para explicar. Por exemplo, eu sempre soube mais ou menos quais são os efeitos de exposição a radiação, mas nunca ao certo; assim como sabia por cima os eventos do acidente sem conhecer de fato o que houve. Se essas questões nunca soaram urgentes ou importantes o bastante para serem pesquisadas, “Chernobyl” faz questão de reordenar essas prioridades. O espectador assiste a um ou dois episódios e logo está curioso para saber como funciona envenenamento por radioatividade; se a pessoa simplesmente começa a passar mal e morre ou se há algo mais. Similarmente, o funcionamento de uma usina nuclear inesperadamente vem à mente.
São nesses momentos em que a clássica técnica de introduzir um personagem ignorante dos fatos entra em cena. De novo e de novo. Sempre há alguém atrasado trazendo motivo para uma conversa elucidativa dos especialistas explicando que largar areia e boro em cima dos restos do reator é uma idéia boa, mas não tanto quando outro especialista explica que existem outros problemas merecendo atenção. Eis outra oportunidade para uma execução pobre com tais diálogos expositivos, mas absolutamente necessários para que algumas informações sejam compreendidas. Realmente não há como explicar alguns detalhes usando apenas sutileza ou sem esperar da audiência um conhecimento prévio. O lado bom é que o roteiro de “Chernobyl” reconhece tal predicamento e faz questão de trabalhar em cima de tais diálogos para que sua qualidade sobreponha a essência expositiva. Funciona tão bem que o último episódio, o com mais exposição, é também o melhor da série por não apenas largar informação mas também responder as perguntas pendentes que corroíam a mente do público.
Trama e subtrama em uma conexão interdependente.
Além do mais, evoca-se também uma visão para além das explicações técnicas para o acidente. Elas estão corretíssimas e esclarecem a grande e repetida dúvida de como um reator RBMK simplesmente explode. Tudo fica claro. Mesmo assim, há mais do que isso envolvido no acidente e logo fica claro conforme o problema deixa de ser local, deixa de ser resolvido pelos diretores da usina e os responsáveis diretos e passa a envolver o resto da nação, o resto do mundo. “Chernobyl” nem de longe tenta trazer um panorama crítico completo sobre o regime soviético porque já há conteúdo demais em jogo para abraçar ainda mais. Diretamente, isto é, pois este é um assunto abordável em segundo plano como uma subtrama que se constrói enquanto o assunto principal a respeito do acidente continua a tomar a frente narrativa. É assim que se vê que o contexto faz toda a diferença e nunca deve ser desconsiderado, por mais que as razões sejam apontadas e os culpados condenados por seus crimes de negligência. Há uma origem por trás dos comportamentos, sempre há algo por trás de qualquer decisão e atitude tomada.
Há quem diga que o sucesso de “Chernobyl” existe por causa daquilo que veio antes, como se a decepção gigantesca causada pelo final de “Game of Thrones” houvesse criado um vácuo por conta da ausência de algo grandioso e digno de ambos os melhores momentos da série e da antecipação da audiência. Então chegou um seriado sem pretensão alguma de ser a próxima grande produção da HBO e nem poderia: seriam oito temporadas contra cinco episódios. No entanto, bastou estes cinco fazerem seu trabalho direito, construindo uma experiência narrativa de valor histórico forte e dramático que o impacto foi feito. Bastou uma minissérie fazer em cinco episódios o que uma temporada inteira falhou para chamar a atenção para aquilo que importa em qualquer obra: conteúdo, entretenimento, engajamento e satisfação. O espectador termina a minissérie informado sobre mais coisas do que imaginava inicialmente, aprecia o tratamento narrativo dos eventos e revive visualmente alguns dos momentos mais icônicos de todo o escândalo. Isso sem esquecer de todo o comentário político a respeito das regras não escritas do regime da época, que talvez até aponta o perigo de similaridades num contexto atual. Mãos vazias não se aplica a esta minissérie.