Mais um produto de uma era de refilmagens e continuações. Ou será que não é? Uma discussão curiosa. Apesar de todas as críticas ao cenário comercial atual do cinema, não é como se a ressurreição de uma série antiga ou a refilmagem de um clássico fracassassem em bilheteria ou crítica. Muitas são elogiadas e bem vistas em seus lançamentos, levantando certa dúvida sobre os males de tal era de mediocridade. Caso me perguntassem alguns anos antes, dificilmente colocaria um remake de “Child’s Play” como desejo e aqui está ele. Um exemplo surpreendente de reimaginação de uma idéia de sucesso com uma contextualização moderna.
As Indústrias Kaslan dominam o mercado de tecnologia. Casas e apartamentos funcionam com a integração de produtos da empresa, desde televisores até um computador doméstico para ajustar a intensidade das luzes e receber comandos de voz para ligar uma música ou desligar aparelhos remotamente. O mais novo lançamento da empresa é o que tem feito as pessoas malucas. O boneco Buddi é equipado com uma inteligência artificial criada para fazer dele o melhor amigo de seu dono. Ele reconhece vozes, grava clipes de som, anda e faz coisas sozinho, fala e se comunica com outros produtos Kaslan. Um boneco chamado Chucky (Mark Hamill) se torna a fuga de Andy Barclay (Gabriel Bateman), que tenta se adaptar à nova casa. Mas quando o boneco começa a apresentar defeitos e até certa vontade própria, Andy cada vez mais teme pelo pior.
A primeira coisa a se notar em “Child’s Play”, talvez antes mesmo do filme ser lançado, é o visual de Chucky. Praticamente o mesmo nos três primeiros e até hoje considerado como o mais clássico e aterrorizante, o original permanece um favorito por misturar a expressão inofensiva de um boneco de criança com outras de ódio, raiva e insanidade. “Bride of Chucky” traz um desenho diferente, diretamente impactado pela conclusão de “Child’s Play 3” com o boneco esquartejado, criticado por alguns por parecer caricato e perder a dualidade de antes, embora eu considere uma aparência tão clássica quanto a outra. “Curse of Chucky” e “Cult of Chucky” retornam ao design original com algumas mudanças, pois o boneco não é exatamente o mesmo de antes e as diferenças são visíveis; mais ou menos como “The Phantom Menace” tentou manter o visual de Yoda e acabou sendo diferente por conta do marionete ser outro.
Como era de se esperar, “Child’s Play” traz algo novo e intencionalmente diferente de antes. Brad Dourif dá lugar a Mark Hamill em uma performance decente e sem muito brilho, às vezes parecida demais com sua versão do Coringa. O boneco ainda é ruivo e tem olhos azuis e sardinhas, usa um macacão jeans e tem sapatos vermelhos. É como o Freddy Krueger do remake de 2010, que tem a fedora, a blusa de lã listrada, a luva e o rosto queimado sem parecer em nada com Robert Englund. O design básico é o mesmo com mudanças imediatamente perceptíveis tão logo que o boneco é visto, sem ser por materiais promocionais maquiando o boneco. A primeira impressão diz que é um boneco feio. Mas não seria essa a intenção mesmo? Talvez se Chucky for pensado como vilão de filme de terror desde o começo. Como um boneco que milhões de crianças comprariam e chamariam de melhor amigo, dificilmente a cara estranha convence.
Mesmo sendo inferior e talvez o pior design de toda a série, não chega a ser ruim ou ofensivo. Há até uma sátira com relação a sua cara e capacidade expressiva, o que pode significar certa ciência dos responsáveis sobre sua criação bizarra. Mais importante, a piadinha funciona. Para além de aparência, ser uma produção de 2019 traz o benefício da tecnologia na criação do boneco. Dessa vez é uma combinação de computação gráfica e modelos reais — os tais animatronics — dando vida ao boneco nos momentos em que cada um faz sentido. Mostra-se bem sucedido em ambos os casos por combinar a realidade de um modelo físico, o qual reage corretamente à luz e sombra em textura e refletividade variados, com os movimentos mais complexos possibilitados por efeitos especiais. Curioso é pensar que tal lógica elogiada já funcionava em 1993 com “Jurassic Park” e o uso estratégico dessas duas técnicas. “Child’s Play” tem um Chucky feio e esquisito, apropriado para criar temor quando ele observa seu dono dormir ao mesmo tempo que exige uma suspensão de descrença porque ninguém em sã consciência compraria algo assim para seu filho.
A aparência do boneco parece ser a única coisa que importa, mas não é. Apenas é difícil não pensar ou falar do assunto quando foi o rosto de Chucky, talvez até mais do que os filmes em si, que entrou para a cultura popular. “Child’s Play” é mais do que isso. Se fosse resumido apenas ao que se vê no boneco, seria um resultado misto, enquanto o sucesso em termos de reimaginação reside em outras coisas. A história original trata de vudu e transferência de espírito para um corpo de boneco e depois para um humano novamente. Chucky não poderia simplesmente matar Andy porque precisava de seu corpo para voltar a ser humano. A idéia aqui é diferente e não envolve nada disso. Qual a razão para o boneco não matar seu dono e todo mundo, por sinal? Ela existe e está diretamente ligada à tecnologia, ao avanço técnico ainda relativamente limitado ao que é possível hoje, diferente de outras histórias em que inteligências artificiais são capazes de tudo. São limitações básicas de programação levadas ao extremo violento do possível sem esquecer do lado cômico.
“Child’s Play” não seria a mesma coisa sem ao menos um traço de humor misturado ao terror. Pelo contexto ser diferente, a comédia também não é a mesma de antes. O grande contraste de antes envolvia um assassino psicótico colocado naquilo que é o total oposto de quem ele era, um boneco bonitinho contra um bandido cabeludo parecendo um andarilho. É o senso de humor sádico, a crueldade e o desejo de matar colocados em um avatar avesso ao que se imagina primeiramente. Como não há transferência de alma, não há riso vindo dessa fonte. As risadas existem por outros motivos oriundos das peculiaridades do novo boneco, o Buddi, que tem muito mais funcionalidades que o antigo Good Guy. A resposta é a integração de tecnologia na história, usar um dispositivo para controlar outros e realizar funções sem precisar usar os métodos clássicos; ligar a televisão sem o controle, fazer algo no computador sem usar atalhos de teclado, escrever mensagens ditando no microfone do celular. Centrando várias dessas idéias em um único boneco, é possível criar um verdadeiro caos.
Mostrando-se um remake surpreendentemente bom e dono de sua própria originalidade na adaptação de um conceito nos tempos modernos, “Child’s Play” acerta também por não esquecer que é um filme de terror, acima de tudo. Falta um pouco menos de freio nesse aspecto, pensando agora. Algumas mortes são espetaculares, sem dúvida; é seu número reduzido que deixa a obra parecer contida e suave nesse aspecto, investindo mais no lado aterrorizante que na violência em si. Não vou dizer que uma nova onda de medo do boneco acontecerá, com as pessoas comentando seriamente sobre como ele voltou a ser assustador. Dizer que Chucky está sério novamente é mais certo, algo que ele consegue ser enquanto encaixa referências de cultura popular e outras de humor negro como deveria.