Muitos já deve ter pensado em tirar sarro de religiões. Não vou dizer todos porque existem aqueles que são religiosos e outros não religiosos que preferem resguardar suas discordâncias e não as expor na forma de sátira, talvez pensando que possa ser um ato ofensivo aos crentes. Pois Kevin Smith não teve esse medo. “Dogma” é o resultado de uma reunião de pensamentos e opiniões a respeito da igreja e suas convenções na forma de um filme sem medo de reprovação. Mesmo assim, é claro que os incomodados não ficariam calados e a reprovação veio de qualquer forma. É o preço a se pagar, já que não há como tocar em assuntos polêmicos sem pisar nos calos de alguém, e também um preço justo, pois a proposta é bem-sucedida na maior parte do tempo.
A Igreja Católica passa por mudanças consideráveis para se renovar diante dos olhos de um povo que a julga como uma instituição ultrapassada e conservadora de valores que não se aplicam mais à realidade presente. Uma das novidades sancionadas pelo próprio Papa é a salvação instantânea de qualquer indivíduo que passe pelos arcos de uma igreja em Nova Jersey. Essa é a oportunidade que dois anjos caídos, Loki (Matt Damon) e Bartleby (Ben Affleck), de serem perdoados e voltarem ao paraíso. O problema é que isso seria uma prova de que Deus é falível, o que acarretaria o fim de toda a existência. A tarefa divina de impedir isso cabe à Bethany (Linda Fiorentino) e dois profetas, Jay (Jason Mewes) e Bob Calado (Kevin Smith), todos os quais não sabem por que foram incumbidos com esse fardo.
Um aspecto elementar na comédia é a entrega, a forma como o texto é comunicado. A melhor das piadas pode ser arruinada se colocada nas mãos de uma pessoa que gagueja ou ri antes da hora. “Dogma” poderia muito bem ser um exemplo disso por conta da natureza do objeto de humor, ou seja, aquilo de que se tira sarro. É comum o bastante encontrar motivo para indignação com religião, uma pessoa que comete pecados a torto e direito ao longo da semana e está todos os domingos na missa para ter sua alma salva. Alguns preferem criticar abertamente, outros transformam isso em humor. Kevin Smith escolhe o segundo caminho e reúne nesse filme praticamente todas as anedotas possíveis numa história só, coerente e interessante.
E são muitas. “Dogma” foi recomendado por um colega de trabalho e sua recomendação funcionou principalmente porque cada idéia nova que ele citava sobre a história era melhor e mais absurda que a anterior. No entanto, característica não existe porque a obra tenta ser chocante e ofensiva, polêmica no tratamento de seus assuntos, é simplesmente porque cada idéia é muito bem pensada e aplicada. Há desde um décimo terceiro apóstolo negro esquecido pela Bíblia até uma coisa besta e simples como o Buddy Christ — o Cristo Amigão, traduzindo livremente. Assistir a “Dogma” em 2019 significa ter visto a figura em algum lugar da internet como um meme e isso é apenas uma amostra de como o filme deixou sua marca, por menor e mais irrelevante que um meme seja. Se até uma figura de Jesus Cristo apontando, piscando e sorrindo constitui uma piadinha interessante, todo o resto teria de ser muito ruim para acabar decepcionando, coisa que não acontece. Há apenas alguns momentos em que a dupla de Jay e Bob Calado exageram na sua participação como drogados acéfalos, mas é algo que vem com o pacote, não há muito o que fazer.
O lado bom desse humor é que ele é comunicado sem esforço. Aliás, o filme inteiro parece ser feito sem muitos truques ou muita fabricação em torno de tudo. As imagens não parecem ter sido compostas uma a uma, com preocupações notáveis a respeito de posicionamento de atores e objetos. As regras de composição são seguidas a fim de manter apenas um nível aceitável de funcionalidade. Quanto ao resto, esse aspecto de relativo improviso contribui muito na hora de comunicar algumas das mencionadas piadas a respeito de assuntos polêmicos da Igreja, por exemplo. Nunca se sente uma seriedade excessiva pesando sobre o conteúdo, tudo é dito sem medo da represália e com a confiança de alguém que simplesmente não liga. Embora pareça bobo, é essa leveza na forma como a obra se porta que faz seu ingrediente principal funcionar: a comédia. Se o humor não tivesse força, todo o resto cairia por terra.
Este estilo de direção traz suas próprias qualidades negativas também. O clímax de “Dogma” é onde melhor se pode sentir como toda a identidade despreocupada de antes encontra limitações para seus benefícios. Melhor dizendo, a falta de orçamento para algumas idéias do roteiro fica evidente e empobrece o conteúdo das cenas de forma que apenas uma direção sólida poderia amenizar a situação. Apenas selecionando perfeitamente o conteúdo de cada quadro para fortalecer a ilusão e enfraquecer os reveses da realidade evitaria a impressão de certo amadorismo por parte da produção. O estilo humilde de Kevin Smith, que antes tinha um reflexo negativo apenas pontualmente nas cenas com efeitos especiais extremamente datados ou simplesmente mal feitos, mostra-se limitado quando todo o clímax soa, bem, limitado. Depois de acompanhar o trajeto dos anjos, cria-se uma expectativa por um ápice daquilo que foi visto na cena da sala de reunião e não se vê nada. A apresentação é decepcionante, no mínimo, e ainda assim acompanhada dos efeitos especiais toscos.
Era certo que “Dogma” deixaria muita gente brava. O curioso é que a Igreja Católica nunca chegou a se pronunciar oficialmente sobre o assunto nem houve algo próximo de unanimidade de opiniões sobre o tratamento da obra sobre religião. Faz sentido. Primeiramente porque a Igreja, por mais que discordasse do ponto de vista apresentado, dificilmente faria um pronunciamento oficial a fim de não dar publicidade indireta ao filme; em segundo lugar, nada do que é dito aqui é exatamente novidade e provavelmente já foi abordado em vários outros lugares ou pensado por várias pessoas. Isso não quer dizer que os argumentos sejam desimaginativos a ponto de não terem o mínimo apelo. É aí que o papel do roteiro se faz sentido por organizar todo o conteúdo de forma que nem os vários lugares e as várias pessoas fizeram. É como se alguém fizesse uma coletânea com todas as piadas de “Toc, toc. Quem é?”: muitas já teriam sido ouvidas antes, mas nunca compiladas daquele jeito.