A vida de Jerry Maguire (Tom Cruise) é ótima. Ele tem um trabalho que paga muito bem como agente esportivo dos maiores atletas e está sempre viajando, apertando mãos, tirando fotografias e discursando para garantir que o próximo peixe grande seja seu. Como se não bastasse, ele tem uma bela noiva a quem pediu a mão de forma romântica com um grande anel de diamantes. Tudo está no lugar, mas algo ainda parece errado. Jerry percebe como todas as conquistas de sua vida são grandes nadas: o amor que acreditou ter é luxúria, seu emprego é nada mais que uma rotina de mentiras e competição e ambição sem significado. Quando ele escreve um memorando exprimindo seus descontentamentos e novos pontos de vista, ele se vê sem emprego e sem tudo o que conheceu por muito tempo. Resta recomeçar com apenas um cliente e uma funcionária que acreditam ele.
Nunca entendi muito bem o pôster de “Jerry Maguire” e a foto de Tom Cruise sorrindo olhando para baixo. Sempre me pareceu que ele estava tocando piano, o que é estranho em uma história sobre um agente esportivo. Com esse pensamento aleatório fora do caminho, o filme sempre despertou o interesse por parecer um drama não tão dramático, uma história sobre dificuldades sem necessariamente perdurar nos pontos mais difíceis e ocasionalmente introduzir um elemento de humor para fins de diversificação de tom. Além do mais, sua única vitória no Oscar de 1997 foi o prêmio de Melhor Ator para Cuba Gooding Jr., algo que chamou minha atenção por ser o único Oscar do ator. Trata-se de uma obra que parcialmente entrega algo alinhado às expectativas, mas eventualmente surpreende por algo totalmente inesperado: é decepcionante na execução dos mesmos elementos que inicialmente despertaram o interesse.
As idéias de “Jerry Maguire” estão no lugar certo. É como estava conversando com minha terapeuta hoje sobre o filme ter uma mensagem interessante e válida ao mesmo tempo que peca numa execução que não faz jus ao conteúdo. Por exemplo, um dos temas principais é passar a agir com o coração na vida. Racionalidade é ótima e pode beneficiar o indivíduo em tantíssimas situações, principalmente naquelas em que a emoção está envolvida e pode tirar a razão e provocar atitudes ditas irracionais ou simplesmente burras. No entanto, existem várias outras situações em que planejamento não funciona ou tem eficácia limitada. Algumas coisas devem ser encaradas sem pensar nos detalhes, nas suposições e nos resultados possíveis porque isso pode até ser prejudicial para a natureza da situação. Por exemplo, de que adianta gastar tempo ponderando as qualidades relativas de uma pessoa e tentar colocá-las numa balança para julgar se um possível relacionamento seria frutífero? Dizer que está em um relacionamento sabendo exatamente todos os motivos é prever o fracasso. As pessoas mudam e, mesmo se o parceiro não mudar, é possível que a própria pessoa deixe de gostar das características inicialmente atraentes.
Assim, não dá para dizer que “Jerry Maguire” está errado em seu argumento principal. O incidente incitante, o pontapé inicial que coloca a história para rodar, é justamente o acordar do protagonista para um novo ponto de vista sobre sua realidade. Objetivamente, ele realmente tinha tudo o que a maioria das pessoas poderia querer: sucesso no trabalho, um lar confortável, uma noiva aguardando casamento, roupas elegantes, admiração dos outros. Mas tudo isso pode perder o brilho tão logo que a pessoa mude o valor associado a estas coisas. Basta questionar sua importância e perceber que a motivação original por trás da conquista delas já não vale mais para perceber a terra subitamente abrir sob os pés e nascer uma fase de ressignificação ou de procura de novos princípios. Não há nada de errado com uma história sobre questionar valores e buscar outros.
O problema é que ela segue por caminhos praguejados pelo simplismo de resumir temas potencialmente complexos em noções simples como associar um valor a um personagem e um valor oposto a outro. Duas personalidades complementares unidas por um propósito invisível pelas duas partes, mas que eventualmente fará seus efeitos notados na vida deles. Tudo bem, normalmente é assim que funciona na maioria das situações da vida, especialmente quando se acha que não há razão ou explicação por trás de uma escolha ou comportamento. Muitas vezes se decide algo inconscientemente e este é âmago da questão: os elos semânticos são invisíveis, as explicações passam despercebidas. Expor a dinâmica por trás de uma relação entre pessoas de qualquer forma que não sutil é expor a freqüente estupidez encontrada por trás dos comportamentos humanos. Se as pessoas descobrissem por que de fato fazem isso ou pensam naquilo, ficariam um tanto decepcionadas com si mesmas. É este o efeito de um filme fraco: tratar de processos natural e espontaneamente humanos usando a lógica, a razão e a mecanicidade de um produto fabricado sem esconder as marcas deste processo, mostrando exatamente qual a função de cada coisa e a conexão entre elas. Isso sem contar a tendência de cair em clichês de gênero como o da Comédia Romântica e da História de Sucesso.
Parte da falha em criar essa ilusão de naturalidade provém também das performances de parte do elenco. Especialmente no começo de “Jerry Maguire”, em que o ritmo é estranhamente rápido e os atores não parecem estar em sintonia com a obra, é possível notar um estilo de atuação mais apropriado para um filme de comédia pastelão. Parece que os atores ainda não sabem em que tipo de história estão atuando e acabam por se entregar a comportamentos e expressões exagerados. Isso muda mais para frente, porém nunca some de fato e representa uma versão distorcida de minha expectativa por um drama com traços de comédia, aqui se mostrando como uma má administração de tom interferindo diretamente no trabalho do elenco.
Curiosamente, a tal interpretação premiada de Cuba Gooding Jr. foi outro ponto que falhou em impressionar. Talvez seja um pouco da influência de como o roteiro usa o personagem, mas alguns bordões e cenas engraçadas não caracterizam uma interpretação admirável, mesmo sendo marcantes. Até diria que Tom Cruise é o ator mais consistente de toda a obra e maior merecedor de prêmios. A única coisa de que realmente não se pode reclamar nem um pouco é a trilha sonora. Embora ela não tenha uma participação em primeiro plano como um filme de Quentin Tarantino, por exemplo, ainda é possível perceber músicas de extremo bom gosto indo de Neil Young a The Who e Paul McCartney tocando ao fundo. No geral, “Jerry Maguire” tem várias idéias boas e até consegue comunicá-las com clareza; talvez até demais, vide os artifícios narrativos expostos estragando parte da magia da experiência. Infelizmente, uma decepção a mais para a conta.