Alicia Hubeman (Ingrid Bergman) é uma pessoa de interesse para o governo americano. Seu pai foi um espião nazista pego e condenado, ao passo que ela nunca compartilhou das crenças dele e sempre se manteve fiel à nação onde cresceu e se criou. Tal duplicidade a torna a pessoa perfeita para o governo, que suspeita uma nova conspiração nazista começando a brotar e deseja que ela se reaproxime de alguns contatos de seu pai fingindo que acredita na causa. T.R. Devlin (Cary Grant) é encarregado de acompanhar a moça e recrutá-la para a missão de colocá-la novamente nos braços de um antigo admirador, algo que se torna um problema quando o próprio Devlin passa a nutrir sentimentos por ela. “Notorious” traça uma linha perigosa entre dever e amor, o perigo e paixão de uma missão de espionagem mascarada por sentimentos.
Costuma-se dizer que o melhor tipo de proficiência é aquela invisível, sutil. No cinema, esse princípio é mais freqüentemente associado à Edição porque ela funciona melhor quando um plano corta para outro, uma cena para a próxima e uma seqüência até sua sucessora sem que a transição seja notada, sem que haja aquilo que se chama de corte seco. Não é fantástico quando uma cena corta de uma cobertura em Milão para uma planície asiática sem que o salto soe estranho? A direção de Alfred Hitchcock muitas vezes funciona dessa forma. Claro, existem tomadas e tomadas em seus filmes que são praticamente impossíveis de esquecer. Toda a seqüência introdutória de “Strangers on a Train” com os pés do protagonista e antagonista se encontrando no trem é uma demonstração notável da genialidade de Hitchcock na construção de uma narrativa visual efetiva, por exemplo. “Notorious” é um dos exemplos mais sutis, mas não menos eficientes, da competência do diretor.
Em uma primeira vista, a atenção é atraída para a fotografia de Ted Tetzlaff. Assim como é comum em trabalhos em preto e branco, eles costumam se destacar quando os criadores das imagens sabem valorizar contrastes e evitar que a imagem caia na insipidez de uma variedade limitada de tons. Não há nada pior para uma fotografia em preto e branco que tons de cinza quase uniformes. Mas é claro que não é apenas a cinematografia a responsável por essa representação visual e o figurino acaba tendo influência direta na criação destes contrastes dinâmicos, não sendo surpreendente que o sucesso seja acompanhado da presença de Edith Head. Ademais, não é só disso que “Notorious” é feito. Alfred Hitchcock participa ativamente quando a questão é dar significado e objetivo para as imagens, dar relevância a um objeto e exercer a composição a favor da narrativa. Não é à toa que uma chave é o objeto crucial da história, usado até mesmo no material promocional da obra. E há mais.
O plano mais comentado de “Notorious” envolve um beijo de dois minutos e meio entre Cary Grant e Ingrid Bergman. Nada de mais hoje, mas para a época foi um feito e tanto já que o limite definido pelo Código Hays era de três segundos, então Hitchcock pediu que seus atores interrompessem o ato a cada três segundos para encaixar nas limitações da censura. Deu certo e a cena sobreviveu sem cortes, além de representar um dos pontos altos sentimentais de todo o filme. Longos beijos imóveis ou passionais demais são clássicos de Hollywood, enquanto este aqui, aparentemente travado e interrompido, funciona como uma demonstração imperfeitamente sincera de pessoas ansiando por aquele momento. Uma boa curiosidade para os artigos sobre o filme, mas de que isso importa tendo a obra como um todo em mente? Primeiramente, há propósito narrativo na cena, seu sucesso e eventual notoriedade provêm de não ser uma curiosidade vazia. Em segundo lugar, é a perícia do par de atores que consegue usar uma aparente mazela e convertê-la em um ato sentimentalmente impactante.
Fica mais fácil enxergar a relevância de uma cena como essa quando o foco é colocado nos atores. Cary Grant e Ingrid Bergman nutrem uma química facilmente perceptível desde suas primeiras cenas, antes mesmo de Grant virar o rosto para a câmera pela primeira vez e mostrar sua face. Ele começa “Notorious” de costas, reconhecível com dificuldade pela sua silhueta iluminada nas bordas revelando apenas seu característico penteado. Com ele relativamente oculto, o destaque cai em Bergman e em suas ações direcionadas a ele até que isso evolui para algo mais. Por mais que o roteiro falhe em estabelecer o início do romance e do envolvimento de forma crível, sendo um tanto súbito e acelerado demais para parecer real, é a conexão entre os atores que sustenta este início turbulento e depois consolida o envolvimento como algo nada mais que sincero.
O melhor é que o roteiro, embora responsável por alguns pontos questionáveis, torna a relação entre os protagonistas tão mais interessante ao escrevê-los como seres humanos falhos e orquestrar o desenvolvimento de acordo com essas imperfeições. É visível como Devlin é um homem acompanhado de preconceitos ocultando seu julgamento. Ele luta contra essa tendência internamente, algo perceptível apenas pela sugestão de uma performance sutil, e ainda assim se entrega repetidas vezes aos seus padrões viciosos. Assim como Alicia recorre a comportamentos confortavelmente nocivos, Devlin também dá várias voltas no mesmo lugar , restando ao espectador apenas isto, a chance de ver um progresso irregular de pessoas se envolvendo entre si e com seus próprios demônios simultaneamente. “Notorious” não trilha um caminho de familiaridade no que diz respeito ao retrato de um relacionamento amoroso. Talvez comece um pouco na moda de Hollywood clássica, com amor brotando à moda da paixão, porém rapidamente cresce sobre essa superficialidade e toma uma forma singular.
“Notorious” desliza em alguns pontos, vale ressaltar. Além do começo de romance de digestão desconfortável, o MacGuffin envolvendo uma conspiração nazista nunca é bem explicado e a motivação da própria Alicia fica no ar sem um desenvolvimento ou uma explicação razoável por trás de sua cooperação. Mesmo com os detalhes da missão desconhecidos, dada a natureza envolvendo espionagem, era de se esperar a possibilidade de perigo, então eis a necessidade de dar um bom motivo para a moça aceitar arriscar sua vida assim. Independentemente de problemas pontuais, a obra não deixa de ser mais um deleite entregue pelo mestre do suspense flertando novamente em outros campos, mais um exemplo de Noir feito de elementos heterodoxos.