Quantos filmes de guerra bons existem por aí? Esse foi um dos assuntos dos quais passei horas conversando com um colega de trabalho e pelo qual eventualmente recebi uma leve advertência, mas devo dizer que valeu a pena por conta da conversa ter me motivado a lembrar um pouco mais do gênero Guerra no cinema e de colocar “MASH” na frente de outros da lista. Caso contrário, talvez demorasse um pouco mais para assistir, considerando que a minha outra experiência com Robert Altman em “McCabe & Mrs. Miller“, embora longe de ruim, não despertou muito entusiasmo pelo resto de seu trabalho.
MASH é um acrônimo para Mobile Army Surgical Hospital —Hospital Cirúrgico Móvel do Exército, na tradução literal. Helicópteros e jipes chegam todos os dias trazendo caixas torácicas fraturadas e pulmões perfurados, buracos de bala e queimaduras de todos os níveis. Os militares instalados ali são médicos, em sua maioria, e sua guerra é fazer as pessoas sobreviverem para morrer outro dia. Poderia ser um ambiente carregado de tensão e da constante ameaça da morte, mesmo estando longe do front, mas o hospital militar se mostra um tanto incomum e inesperado para um cenário de guerra. Todos estão sempre de bom humor, fazendo piadas o tempo todo como se não houvesse um rastro de motivo para se preocupar e manter uma expressão séria.
Comédias de Guerra não são de todo comuns porque, bem, não é um assunto do qual as pessoas fazem piadas. Jovens são tirados de seus pais, de seus trabalhos, de suas faculdades e de suas vidas para lutar uma guerra de interesses políticos e econômicos, muitos perdem suas vidas e nem sabem o porquê direito. Se entrar em méritos de holocausto, genocídio e fanatismos religiosos, há ainda menos razão para pensar em qualquer outra coisa além do ser humano cruzando os limites da bestialidade ao usar de sua racionalidade para ir contra a ordem da natureza e destruir a si mesmo. “MASH” poderia ser um experimento terrivelmente errado se considerasse chegar minimamente perto de satirizar ou retirar o peso de questões sérias. Seu propósito é outro e sua abordagem é diferente, nada como pisar nos calos da humanidade apenas por valor de choque. Não quer dizer que o filme passe a oportunidade, ele só faz com o cuidado de alguém que sabe onde pisa.
É dito que o melhor tipo de comédia é aquele que não faz graça como um fim em si mesma, mas aquela que aponta para algo mais. Isso pode ser o freqüente lado negro da personalidade do comediante, que usa sua própria dor como combustível para um comentário ácido sobre sua realidade e possivelmente a de outras pessoas; pode também ser uma crítica bem direcionada usando ferramentas diferentes das tradicionais para transmitir seu ponto. “MASH” não é um tiro na água, uma seqüência de palhaçadas arbitrariamente ambientadas na Guerra da Coréia. O alvo da comédia? As regras. É questionável, no mínimo, imaginar que existe uma legislação por trás da mencionada questão de jovens sendo obrigados a morrer, um conjunto de palavras ditando o destino possivelmente trágico de milhares de pessoas. Não só isso, toda a cultura militar envolve rigidez e disciplina instituídas através da força, seguir as regras porque sim e fazer as coisas porque são ordens embasadas na hierarquia e das patentes. “Sim, senhor” e “Não, senhor” para todas as coisas.
Há quem ache isso ridículo e neste caso essa pessoa é Robert Altman. Honra e glória e sacrifícios nobres são temas para outras histórias, “MASH” é quase um universo próprio destacado do resto do mundo porque não acredita nas baboseiras de seguir protocolo porque sim e fazer as coisas exatamente de acordo com as normas. Também não chega a ser um caso de rebeldia sem direcionamento, pois todos os presentes fazem seu trabalho e aquilo que é esperado deles. Há, inclusive, pelo menos meia dúzia de cenas em que os médicos estão na sala de cirurgia costurando lacerações e administrando fármacos intravenosamente. Tudo nos conformes exceto pelo fato dos personagens baterem papo e falarem sobre as notícias enquanto há um paciente com as tripas à mostra sobre a maca.
E não é só isso, a grande sátira não é se limitar à comportamentos peculiares. É como uma realidade paralela de fato, na qual as regras de sempre caem por terra mais rápido do que a imunidade depois de uma carteira de cigarros e alguns litros de cerveja num dia de inverno. O repertório de “MASH” é extenso e só melhora conforme cada novo pedaço de absurdo é acrescentado ao anterior até que finalmente não parece haver mais para onde ir e a história se supera novamente. O clímax é o ápice da loucura e mal faria sentido se eu dissesse aqui qual é. O efeito da pancada é tão mais forte porque o espectador pode se encontrar esperando um murro na boca e acabar por receber um chute no saco e um dedo no olho. Seria tosco em qualquer outro contexto, aqui sendo nada menos que a maior demonstração de audácia numa obra dedicada a exaltar o surreal freqüentemente encontrado em doses mínimas no cotidiano e transformá-lo em constante.
Embora o arranjo de “MASH” pareça casual com sua estrutura narrativa quase episódica e dividida em esquetes conectados pelos atrapalhados comunicados dos alto-falantes do acampamento, existe um sentimento de unidade no sucesso que a obra tem em juntar tudo sob os mesmos tom e propósito. Sucesso visto principalmente na capacidade da obra de ser honestamente engraçada, arrancando risadas e sorrisos sinceros nos momentos certos, naqueles em que o objetivo da obra é exatamente este. Curiosamente, nunca adivinharia que o clima dos bastidores era algo menos do que o júbilo visto na obra final. Nunca acharia que os dois atores principais teriam tentado fazer Robert Altman ser demitido, não quando são justamente eles as peças mais cruciais na manutenção do momentum cômico, agindo normalmente e fazendo graças sem tratá-las como uma pegadinha. Seja lá qual tenha sido o motivo para Donald Sutherland e Elliott Gould tentarem substituir o diretor, nenhuma animosidade se lê em suas sublimes interpretações.