Esta deveria ser a referência principal para quem quer começar a fazer cinema. Fazer cinema mesmo, não necessariamente escolher a área num curso superior,fazer planos relativamente concretos de uma primeira produção em termos de orçamento, escopo, assunto, locais de filmagem, número de atores e tudo mais que normalmente se esquece na empolgação apaixonada dos jovens entusiastas, que vêem os grandes e querem ser como eles. A aspirante à fotógrafa que sente as pernas tremerem assim que a palavra arte é mencionada e demonstra a fascinação de uma criança quando apresentada a algo novo. Tudo é fascinante! Como não deve ser comandar uma produção de 125 milhões de dólares e ter seu nome como diretor nos créditos! Muito se pensa em começar com “Senhor dos Anéis” em vez de “She’s Gotta Have It”.
Há algum demérito em começar com algo menor? De forma alguma. Simplicidade não é o mesmo que simplismo, assim como uma produção de baixo orçamento não é uma produção de baixa qualidade. Fato que é muito fácil se empolgar com o melhor trabalho de mestres há décadas na área e querer fazer igual, ser tão respeitado quanto e até mais em metade do tempo, chegar onde Bergman chegou aos 39 anos com 24. A isca é tentadora e, no entanto, vários filmes excelentes são produzidos em começos de carreira ou com muito menos recursos do que de costume. O exemplo quintessencial continua sendo “12 Angry Men” e o uso de praticamente um set só durante a produção toda. O orçamento ainda é bem maior em comparação ao de “She’s Gotta Have It” — U$375 mil de 1957 contre U$175 mil de 1986, sem correção — porém não deixa de representar uma possibilidade de ambientar uma história incrível num lugar só, o que já economizaria muito dinheiro e tempo na construção, aluguel e iluminação de sets.
A história contada é a de Nola Darling (Tracy Camilla Johns), uma garota de apetite sexual pouco moderado. Ela conhece Jamie Overstreet (Tommy Redmond Hicks) na rua e desperta o interesse dele instantaneamente. Depois há Mars Blackmon (Spike Lee), mais tarde Greer Childs (John Canada Terrell) e então os três juntos. O problema é que todos querem exclusividade e não se gostam. Jamie é certinho, respeitoso e se preocupa com toda e qualquer necessidade de Nola; Mars nem emprego tem, quer mais é encontrar uma garota bacana e se divertir um pouco; Greer é um elitista sarado de cabelo lambido, orgulhoso de cada fio de cabelo em seu corpo. E Nola não consegue se decidir. Por que um quando há três?
É como um quadrado amoroso, relativamente. Exceto que todo amor parte de e é direcionado a um lugar só. De qualquer forma, é uma idéia prática e palpável de ser executada em um filme de orçamento baixo. Com roteiro e elenco bons, o projeto pode funcionar em um nível respeitável e maior do que apenas básico. O básico requereria o mínimo de coesão narrativa, de aptidão do elenco e de direção de cena para algo ser aproveitado das idéias primordiais, ao passo que bons atores possibilitam que essas mesmas idéias atinjam seu potencial emocional e narrativo através da interpretação das palavras em ações. É isso que se encontra em “She’s Gotta Have It” e mais.
Os atores possuem papéis relativamente simples, sem desenvolvimentos profundos distanciando os estados psicológico, social e físico iniciais dos finais. Não que precise ser desse jeito sempre, mas é de se pensar que algo assim seria difícil de encontrar em uma trama do tipo “Quem vai ficar com Nola?”. O que se encontra é mais que o bastante para satisfazer as exigências desse roteiro. “She’s Gotta Have It” tem personagens de personalidade, não só diferentes entre si mas também com substância própria, todos se encaixando em certo estereótipos que podem se gabar de charmosos e relacionáveis. Até Greer, o personagem mais bidimensional, ganha personalidade através da direção de Spike Lee exagerando suas qualidades já gritantes de forma que rende ao menos um alívio cômico. Mesmo que indiretamente, o personagem é exaltado.
Os outros já não precisam disso. Jamie é o cara correto, educado, trabalhador e confiável, provavelmente o único dos três que verdadeiramente deseja algo sério e duradouro com Nola. Chato? Poderia ser, porém Tommy Redmond Hicks faz dele alguém que une todas essas qualidades numa pessoa com quem se partilharia uma rodada de cerveja e falar do jogo de basquete. Uma das cenas finais entre ele e Mars mostra isso perfeitamente, um ator demonstrando versatilidade para sair de seu comportamento esperado em cena e falar um pouco sobre um assunto corriqueiro. Considerando que “She’s Gotta Have It” só teve uma tomada gravada por cena, é de se admirar e muito a performance do elenco de conseguir manter a ilusão viva sem nenhum momento que chame a atenção para si como um deslize, mesmo que pontual.
O próprio formato de “She’s Gotta Have It” é muito favorável para o escopo da produção. A narrativa se constrói parcialmente com cenas de teor documental, com os personagens falando diretamente com um entrevistador por trás da câmera, e na maior parte do tempo com esses relatos tomando vida e sendo interpretados como se fossem eventos do presente. Em suma, as cenas documentais funcionam como auxílios narrativos. Não bengalas, estão mais para uma forma espertinha de preencher lacunas e adicionar substância ao enredo notavelmente simples. “She’s Gotta Have It” não é cinema caro, é cinema esperto e cinema competente; reconhece o pouco recurso que tem, faz o melhor que pode com roteiro e elenco e ainda traz uma trilha sonora que talvez seja a melhor parte da experiência. Não discordaria se alguém dissesse que ela é o elo essencial de tudo ao estabelecer uma atmosfera forte em volta do universo narrativo do Brooklyn nova iorquino. É como as composições de Gershwin aliadas à Nova York de Woody Allen em “Manhattan“, nasce um clima ímpar a partir de tal união.
1 comment
Bacana, uma análise importante de She’s Gotta Have It” e como é relatado na serie na netflix o universo negro, uma reverencia aos artistas negros, e um romance lesbicos entre duas negras. Um cinema com artista negros, mostrando a realidade negra nos estados Unidos.