O que dizer sobre Robert Crumb? Melhor recomeçar. Quem é Robert Crumb e o que ele faz da vida? Nada melhor que um documentário para responder todas essas e outras questões que provavelmente nem existiam antes do espectador começar a assistir. De qualquer forma, um pouco de introdução ao assunto da obra não se encontra fora do lugar em uma análise sobre ela. Robert Crumb é um cartunista americano que ganhou fama durante os Anos 60 com o movimento dos quadrinhos underground, parte da onda de contracultura de psicodelia e rebeldia para com a norma social vigente da época. Crítica social e uma dose pouco modesta de exagero, a visão de um cidadão sobre o seu mundo em personagens como um baixinho careca de longa barba branca ou uma tirinha com personagens de cabeça minúscula caminhando as ruas com suas pernas e pés gigantes. “Keep on Truckin'”, é dito.
Mas aqui no Brasil muito pouco se fala de Robert Crumb. Nem mesmo agora, com o advento de quadrinhos autorais desconectados dos grandes selos e de gente relativamente pouco famosa, ouve-se falar muito dele. Talvez seja ignorância minha, porém nunca vi reimpressões e retrospectivas de seu trabalho à venda nas lojas ou mesmo comentadas em grupos centrados em quadrinhos. Por que se interessar então? A pergunta se responde por conta própria para os curiosos; quanto ao resto, eles encontrarão seu voto de confiança inicial satisfeito por várias outras questões despertadas pelas próprias ramificações da proposta inicial de mostrar quem é o protagonista da história. Ao mesmo tempo, a vida e trabalho de Crumb nunca deixa de ser um tema presente e elementar para todo o resto, a base narrativa, o eixo central de onde tudo sai e para onde tudo retorna.
Claro, falando em termos de história pessoal, dificilmente se pode dizer que o trabalho de vida de uma pessoa é a origem de todas as coisas, é justamente o contrário. O trabalho, especialmente o artístico, normalmente provém da expressão condensada da experiência de vida; aprendizados e situações importantes para o indivíduo traduzidas em um novo contexto com outros personagens e o objetivo de dizer algo, seja lá o que o indivíduo deseja. Freud diz algo sobre o assunto ao traçar a origem de muitos males da vida adulta até a infância. Nem sempre quer dizer que houve algum tipo de trauma grave na juventude causando um bloqueio de desenvolvimento no futuro, e sim que nenhum sintoma surge do nada e de graça. “Crumb” identifica o valor dessa relação entre passado e futuro ao explorar também tudo que existe em torno do homem e seu trabalho.
De um lado, não é burrice alguma focar no ofício de Robert Crumb, afinal de contas foi por isso que ele ficou famoso e conhecido por todo o país, a popularidade de quadrinhos levou as pessoas — ou pelo menos, os envolvidos nesse documentário — a se interessarem pelo que veio antes daquilo que já se conhece. Um dos pontos abordados, por exemplo, é o efeito da fama quando passou a fazer parte da realidade do cartunista e as pessoas começaram a reconhecê-lo na rua, saber seu nome e gostar mesmo de seus personagens. Alguns aproveitariam a onda de popularidade para gozar das regalias proporcionadas pela bajulação e o reconhecimento, enquanto ele tem outras idéias sobre o assunto.
Sendo um espectador leigo a respeito da carreira de Crumb, é possível dizer que o caráter informativo básico da obra é executado como deveria, deixando uma impressão de que a exposição das tirinhas foi suficiente; nem muito excessiva a ponto da obra inteira se basear na recontagem de quadrinhos ou na apresentação de personagens populares, nem negligenciada ou tratada como algo de conhecimento prévio do espectador. Há espaço para apresentar alguns personagens populares e mais de uma história inteira contada ao longo do filme. E o melhor: o próprio cartunista faz a leitura de seu trabalho. É um toque especial ver o autor lendo e interpretando um quadrinho seu que poderia ser visto como ofensivo e polêmico por alguém de fora, mas em suas palavras soa tão normal quanto o Batman deixar o Comissário Gordon falando sozinho no telhado da delegacia.
Por outro lado, a exploração de tudo em torno do material principal inicialmente parece apenas um complemento genérico, o padrão de explorar um pouco dos assuntos paralelos para dar uma impressão de abrangência de conteúdo. Nada disso, a família de Robert Crumb é algo mais. Embora não seja possível dizer que há uma linha psicológica identificável direta entre a vida do artista e o que ele veio a produzir, outras pontes se apresentam e mostram como os frutos de uma mesma árvore podem ser bem diferentes e tão similares ao mesmo tempo. Seria interessante uma análise mais profunda, uma que infelizmente passa bem perto do impossível no cinema, o que nem de longe significa que ver o protagonista revisitando o tal tempo de qualidade em família deixa de ser um tanto revelador. Muitas imagens falam por si e os pontos apenas esperam para serem conectados entre atitudes abusivas e suas conseqüências visivelmente marcantes. O que um pai e uma mãe não fazem aos seus filhos, não é mesmo?
Na verdade, não há nada muito inédito a se dizer de “Crumb”. É um documentário sobre uma pessoa famosa de antes da época em que qualquer figura proeminente se tornava a base para uma ficção biográfica com um recorte de seus grandes momentos e uma mensagem de texto branco sobre fundo preto dizendo o que acontece depois. A similaridade é que ambos os formatos, por mais díspares, ainda possuem objetivos comuns de contar a história do indivíduo como um todo; sua história, seus feitos, sua família, seus relacionamentos, sua visão e seus ideais. Tudo isso se encontra aqui, numa narrativa dosando bem todos esses elementos sem parecer que está completando uma lista de requisitos. É um documentário realizado de forma simples e eficiente no contar de sua história.