James Bond (Daniel Craig) se torna um agente 00 há pouco. Sua missão é investigar as conexões ao redor de um indivíduo obscuro chamado Le Chiffre (Mads Mikkelsen), que trabalha com o dinheiro de terroristas ao redor do mundo como um banqueiro. Bond deve primeiro compreender o plano de seu alvo e arranjar uma forma de capturá-lo a qualquer custo. Cada minuto que Le Chiffre vive em liberdade pode significar mais vidas perdidas e pessoas erradas com poder em mãos. Seu alvo eventualmente o leva a uma partida de pôquer de alto risco chamada Casino Royale, na qual uma mão perdedora pode significar muito mais que um golpe no orgulho.
Ao longo de seus mais de 50 anos, James Bond levantou sobrancelhas várias vezes. Um dos mais freqüentes questionamentos diz respeito à mudança de atores em todo esse tempo. A aparência muda, a personalidade muda, os métodos mudam… Será que James Bond é apenas um codinome como 007? Apenas alguns filmes demonstraram conexão narrativa entre si, com alguns compartilhando vilão, por exemplo. Considerando as liberdades que a própria produtora tomava com a cronologia da série, nunca houve a necessidade de reiniciar formalmente o universo e, no entanto, foi isso que aconteceu em 2006, apenas quatro anos depois da última aventura de Pierce Brosnan em “Die Another Day“. Daniel Craig entra em seu lugar em “Casino Royale”, que desconsidera tudo o que veio antes para começar sua própria história.
Mas era mesmo necessário? Talvez não. Pelo menos até “Skyfall” não havia uma razão concreta para evitar que o Bond de Craig fosse o mesmo de Brosnan, mesmo porque Judi Dench retoma seu papel como M. É só em “Spectre” que um vilão do passado é recriado com novas postura, aparência e história. A razão provável para o reinício foi a mudança de tom e de abordagem, com Bond deixando um pouco de lado as convenções construídas em 40 anos, os apetrechos mirabolantes, os absurdos e clichês esperados como o vilão escolher a forma mais improvável para matar o agente. Ele agora tem uma história mais relacionável e pé no chão. As primeiras cenas o mostram em seu princípio de carreira, antes mesmo de adquirir o status 00, e servem para um propósito maior do que simples curiosidade.
Pela primeira vez, o ator tem um contexto palpável a respeito da condição do personagem; ainda ser um jovem agente têm implicações perceptíveis na performance, são detalhes pequenos e enriquecedores de um personagem conhecido porque se pode vê-lo ali. É James Bond ainda, só que em um contexto que exige adaptação deste conceito. Isso não quer dizer que Craig seja o melhor Bond porque outros fatores estão envolvidos na interpretação de 007, mas ao menos em “Casino Royale” se encontra uma nuance nem sempre notada em outros atores e filmes. De todas as coisas que se pode falar dele, falta de engajamento na tentativa de trazer algo novo não é uma delas. Bond ainda não aprendeu a superar sua arrogância, muitas vezes age como um jovem playboy de temperamento explosivo, inconseqüente mesmo em uma situação de apostas altas.
Tudo isso encontra reflexo também na história. Este não é um mais um caso do ator tentar aprofundar seu papel e ficar sozinho em sua proposta enquanto o resto da obra não aproveita tal esforço com um enredo pobre e com coadjuvantes que fariam bidimensional soar como um elogio. Um dos pontos mais simplistas das obras do passado foi freqüentemente limitar o papel dos personagens secundários a algo muito pontual, tomando como exemplo o próprio Felix Leiter e sua função de aparecer por alguns momentos para trazer um pouco de informação. Muitas Bondgirls passaram por isso também, relegadas a apenas acompanhar a missão ou aparecer para cumprir uma função rápida. Parte da transformação de “Casino Royale” envolve investir em participações relevantes.
Vesper Lynd é o melhor exemplo, de longe. Ela é o que se pode chamar de Bondgirl ideal por ser bem mais do que um ótimo modelo para maquiar, pentear e vestir com roupas que valorizam seus atributos físicos. Isso não é dizer que Eva Green careça de beleza de alguma forma, ela tem isso de sobra com um adicional considerável de charme, algo que nem toda pessoa possui. Chega a ser surpreendente como a participação é impactante porque só surge com pelo menos uma hora de filme; o enredo não depende dela e, não obstante, usa-a ao máximo quando entra em cena. Talvez não seja a representação viva de uma relação entre duas pessoas desde a apresentação até o que vem depois, mas essa nem é a proposta de “Casino Royale”. No auge da realidade cinematográfica e suas regras peculiares, está muito perto do melhor que se pode esperar de um relacionamento bem desenvolvido no mundo de James Bond.
Por último e nem de longe menos importante, a ação de “Casino Royale” é o tecido onde todas as outras costuras existem. O resto, por melhor executado que seja, não deixa seu lugar como suplemento ao que continua como elemento central da experiência. Martin Campbell retorna para dirigir outro filme espetacular, revive a série uma segunda vez depois do hiato de 6 anos com “GoldenEye” e agora com Daniel Craig protagonizando um reboot formal. O filme começa e não para mais, segue sabendo manter o ritmo sempre numa faixa agradável de intensidade e com uma direção funcional e atenta para fazer cada cena, seja qual for sua natureza, ter o efeito desejado. Fazer de um jogo de pôquer um clímax intenso e cativante, além de compreensível sem o emburrecer, é uma de várias demonstrações deste sucesso. Há apenas um momento que parece desacelerar demais e de fato seria um problema se a função narrativa não se apresentasse já na seqüência.
“Casino Royale” é 144 minutos de pura fluidez. Uma cena de ação construída sublimemente aproveitando todas as possibilidades que um orçamento farto oferece, como quebrar um recorde mundial ao capotar um Aston Martin e ainda ter uma cena fantástica de quebra — felizmente, essa manobra não foi estragada por um efeito sonoro infeliz como em “The Man with the Golden Gun”. Quanto a influência da série Bourne, é exagero dizer que ela torna o filme mais genérico ou uma transposição de elementos populares da série em um novo formato. Digamos que a chegada de Jason Bourne foi mais um tapa na cara do que uma muleta criativa, ele mostrou aos produtores a necessidade de renovação e foi isso que se viu em um James Bond feito sem as mazelas do passado.