“Mary and Max” conta a história de, bem, Mary e Max. Ela é uma garotinha de subúrbio um pouco infeliz com sua vida de sempre, sendo caçoada na escola e encontrando pouco conforto em casa com sua mãe constantemente dopada de remédios e bebida. Sua saída é escrever aleatoriamente para um homem que ela encontra na lista telefônica, um judeu obeso e recluso de chamado Max. Ele responde a carta e logo eles se tornam amigos, compartilhando pedaços de suas vidas solitárias e encontrando consolo com milhares de quilômetros entre eles. A distância entre a Austrália e Nova York pouco interfere na criação de um laço inexistente em suas vidas diárias.
“Mary and Max” é um filme simples. Sua técnica de animação, a “claymation”, está longe de ser das mais complexas e parece um tanto tosca em vários momentos por não se preocupar tanto com a naturalidade e realismo de movimento como outros filmes mais perfeccionistas, por assim dizer. Os próprios modelos são caricatos e sem muitos detalhes em roupas, expressões, cabelo etc. Como pode, então, ser uma animação amplamente respeitada e lembrada ano após ano como um filme sobre a natureza humana e a ocasional existência de sentimentos sinceros entre as pessoas? Eis a resposta. Trata-se de um caso oposto àquele em que a parte técnica é criativa, moderna ou incomum em sua tecnologia enquanto o conteúdo não chama muito a atenção ou até deixa a desejar. Aqui o conteúdo se exalta muito acima daquilo que se vê.
Mas também não é como se o trabalho fosse relaxado ou algo do tipo. No entanto, é notável a diferença entre “Mary and Max” e “The Nightmare Before Christmas” ou “Wallace and Gromit”, por exemplo. Aqui os modelos possuem poucos detalhes, um rosto quase sem minúcias, cabelo e roupas quase sem movimento e fluidez, a própria Mary com um rosto parecido com uma pêra amassada. São formas básicas com um ar infantil sobre si, que passam a impressão de que uma criança pegou uma caixa de massinha de modelar e fez os bonecos. Claro, isso não é verdade. Nenhuma criança poderia chegar no nível apresentado porque a comparação estabelecida é entre trabalhos de alto nível de produção feitos por equipes de artistas profissionais. Inclusive, não se trata de criticar a qualidade de animação aqui ou algo do gênero. É apenas um elemento que pode chamar a atenção negativamente em um primeiro momento, mas não é um problema por conta de estar em perfeita consonância com os temas da obra.
É fácil olhar para a cara de Mary e achar que tudo é muito básico e sem graça. Nem mesmo seus óculos ficam retos na cara dela, metade é torta para baixo como se alguém tivesse amassado sem querer o modelo de massinha. No entanto, essa impressão logo passa quando se percebe o valor de todo o resto que “Mary and Max” tem para oferecer, especialmente porque esse resto justifica, explica e embasa essa identidade visual pouco elegante. Imperfeição. É comum ver em Hollywood tudo perfeito e com um visual limpo, sem uma vírgula fora do lugar, efeitos especiais dando conta de quaisquer falhas e criando até mesmo o que seria impossível ou muito difícil usando ferramentas concretas. Por que então, elas estão presentes aqui? Basta uma olhada na vida de ambos os personagens principais para ver que suas gramas não são verdes e a do vizinho ainda menos, tudo tem a mesma tonalidade cinza e morta de uma vida anedônica e sem brilho.
“Mary and Max” gira em torno da representação da disfuncionalidade, a forma errática como as coisas funcionam e por vezes sequer funcionam. A vida de Mary é um retrato vivo e poderoso de como a vida pode ser ingrata para algumas pessoas, viver numa casa mal cuidada com uma mãe claramente despreocupada com o bem estar da filha, que passa os dias largada às moscas sem ter muito o que fazer. Talvez possa se dizer que a mãe não é lá muito bem desenvolvida, embora nesse caso a caricatura seja ideal para mostrar que realmente há pouco interesse pela vida da parte dela; alguém que nem se dá o trabalho de parecer apresentável e fede a cigarro, bebida e higiene através da tela. Não é surpresa ela eventualmente buscar uma forma relativamente incomum e do nada de tentar sair de sua situação e encontrar algo novo e possivelmente agradável por menor que seja.
Quando sua interação com o rapaz do outro lado do mundo começa, uma corrente de sentimentos vem à tona naturalmente e sem pretensão alguma. A simplicidade se torna representante da honestidade da história para com seu conteúdo, sem querer transmitir nada mais do que a realidade de duas pessoas tão diferentes quanto semelhantes; Estados Unidos e Austrália, homem de 44 anos e garota de 8 anos, cotidianos diferentes, porém ambas as pessoas sob a constância da solidão. Dedicando-se a mostrar como visões de mundo distintas, uma em formação e outra infectada pelos males da vida adulta, “Mary and Max” tem sucesso onde tantas outras obras falham. Não há lições a serem dadas, mas aprendizados representados em sua forma mais ingênua e pura. Ao falar com uma criança e depois mostrá-la ao longo do tempo, muito do que se perde no caminho volta, nem que por um instante, ao alcance do espectador. Soar sincero é o que se conquista aqui e mais que o bastante para criar uma experiência satisfatória e revigorante.
Chega a ser um pouco previsível o fato de “Mary and Max” ter tido tão pouca atenção do circuito comercial de cinemas em seu ano de lançamento. A falta de um lançamento amplo pode, inclusive, ter sido responsável pela ausência do longa tanto no Oscar como no Globo de Ouro. Talvez a vitória ainda assim não acontecesse porque a competição do ano incluía “Up”, “Coraline”, “Fantastic Mr. Fox” e outros, porém ao menos a disputa seria um pouco mais acirrada e emocionante. De todas as coisas que esta animação merecia, ser ignorada de forma alguma chega perto de ser considerada. O simples feito de representar emoções humanas sinceras mostra como o sucesso às vezes vem dos lugares e jeitos mais básicos.