“Us” é mais uma apologia gigante de Jordan Peele em forma do Terror. Sua história começa com uma garotinha chamada Adelaide em um parque de diversões com seus pais nos Anos 80. Ela se distancia deles quando se distraem e segue pelo parque até chegar na praia e em uma casa dos espelhos vazia, onde ela encontra algo que a marca para toda a vida. Muitos anos mais tarde, Adelaide (Lupita Nyong’o) tem dois filhos com Gabe (Winston Duke) e tira férias com eles e outra família de amigos em Santa Cruz, Califórnia, um lugar perfeito se não fosse tão perto de onde o trauma de infância aconteceu. Mesmo assim, tudo parece tranquilo até que chega uma visita inusitada: quatro pessoas exatamente iguais à família de Adelaide aparecem na casa com intenções pouco nobres.
Jordan Peele entrou no radar do cinema há dois anos com “Get Out“. Entre tanto ativismo e exigências por maior diversidade étnica em Hollywood, este filme de Terror com toques de Suspense e Comédia mostrou ser algo diferente por aplicar o tema do racismo na trama através de uma grande metáfora criativa e frequentemente absurda. Não foi um filme genial; memorável e único o definem melhor. Então surge “Us” com Peele tentando transmitir uma mensagem e construir uma metáfora, novamente um jeito peculiar e tanto para representar os temas que o tocam. E, sim, a idéia é que se identifique algo sob todas as camadas de caracterização, convenções de gênero, estilo e enredo, embora a realidade possa não mostrar uma alegoria que funciona. Seria uma experiência absolutamente frustrante, além de vazia, se o corpo da obra não funcionasse tão bem. Pecar em sua função sub-textual não impede que uma boa parte do filme ainda seja aproveitável.
Jordan Peele entende como o Terror funciona. Ele não é apenas um entusiasta que criou um primeiro filme misturando elementos de terror com outros gêneros e saiu com uma reputação exagerada. “Us” é uma obra muito mais pura, nesse sentido, e funciona desde os primeiros momentos como um bom produto de seu gênero. Primeiramente, estabelece-se uma atmosfera de calma, de normalidade, em que nada acontece e a vida segue sem perturbações. Dessa forma o espectador entende como é o padrão daquele universo narrativo. Depois surge uma ameaça e o status quo é quebrado, criando espaço para a insegurança dominar a vida de personagens ignorantes sobre o que fazer e tendo como única opção agir na base de raciocínio rápido e de instinto. Adicionando um antagonista nessa equação, talvez um elemento sobrenatural e algum mistério — como o desconhecimento de motivações — então está pronta uma base narrativa. É seguindo literalmente esse caminho que “Us” prossegue e se desenvolve em cima dele.
Sair-se bem na concretização dessa estrutura mostra frutos quando se percebe uma transição gradual da situação ficando feia sem ser possível dizer exatamente como em um primeiro momento. Há apenas a sensação de que há algo errado no horizonte, quase como uma intuição provocada intencionalmente pelas circunstâncias. E é mais do que um mero contraste também, mudar dia para noite, sombras suaves para bem definidas, escurecer os ambientes, usar cenários fechados etc. Tudo isso já faz parte do padrão seguido e repetido até mesmo pelas mais medianas obras. Quando o antagonismo finalmente se revela, muitas das qualidades técnicas e narrativas de “Us” também o fazem. Em comparação com “Get Out“, a parte visual como um todo é mais sofisticada ao partir de um visual mais limpo e casual para algo mais artístico, por assim dizer, no sentido senso comum da palavra. Isto é, a identidade visual como um todo se mostra mais ousada e disposta a tentar coisas maiores que uma imagem clara de conteúdo discernível. A fotografia vai mais longe e se embebe de sombra e penumbra, entrega-se completamente ao propósito de estabelecer um clima intenso. Tudo isso com muito sucesso, vale dizer.
A trama, por sua vez, é simples e opera com a mesma dinâmica a maior parte do tempo, caracterizando basicamente uma história de perseguição. O que fazer quando pessoas exatamente iguais à você surgem batendo na porta com caras de poucos amigos? Certamente não é um episódio de “How I Met Your Mother“. Mal há tempo para pensar em como aquilo é possível quando as intenções hostis se manifestam e o longo confronto começa. São bons vilões e uma premissa interessante: gente fugindo de assassinos… exatamente iguais a eles. É um jogo de gato e rato sem cair na obviedade de repetir a mesma coisa o tempo todo, embora essa seja a dinâmica dominante praticamente até o final do filme. O roteiro consegue construir sequências sem erro quanto a hora para cada coisa; uma cena de fuga subitamente se torna um confronto equilibrado subitamente, então alguém morre ou se fere e tem de trocar estratégias rapidamente, assim por diante.
Previsibilidade é dificilmente aplicável, mesmo que tais sequências menores não sejam uma fábrica de reviravoltas. No entanto, há uma grande virada perto do final e ela é um tanto… decepcionante. Aliás, para haver decepção é necessário algum tipo de expectativa e isso não existe quando os momentos finais de “Us” finalmente chegam. Não diria que é um filme chato e que chegar até o final é uma tarefa onerosa de alguma forma porque a melhor parte é justamente o caminho que se trilha até a conclusão, porém o sentimento dominante quando o filme acaba é de uma obra sem propósito — pointless, como o termo em inglês define melhor. Para quê tudo aquilo? Não foi uma viagem ruim, então talvez o problema seja a associação do mistério do enredo com algum tema maior. É como em “Get Out“: nota-se algo bem esquisito naquele evento de família e eventualmente a história revela a explicação bizarra de tudo. Aqui acontece o mesmo, exceto pelo fato do conteúdo subliminar carecer da mesma força e até se perder um pouco na representação.
Restam algumas opções: acreditar que a história toma um belo tombo na hora de revelar seus segredos e é menos inteligente do que acha ser; pensar nos possíveis significados para alguns dos elementos confusos e se frustrar com a forma como eles foram incorporados na história; ou aceitar a condição de perguntas sem respostas. De qualquer forma, quanto mais se pensa em tudo isso, mais parece que talvez o roteiro não seja tão bom na resolução de seus mistérios quanto foi na criação deles. “Us” demonstra uma série de evoluções em vários sentidos, como uma trilha sonora aterrorizante guardada para as horas certas, e um passo para trás significativo na hora de amarrar a trama. Um final com sentimento de “tanto faz” certamente não pode ser algo bom.