Charity Hope Valentine (Shirley MacLaine) é uma dançarina de bar e apaixonada por natureza. Já é notícia velha ela aparecer saltitando e enxergando nuvens coloridas depois de encontrar um homem maravilhoso, que certamente deve ser o amor de sua vida. E com toda a certeza do universo, ela quebra a cara e volta para contar para suas amigas como nada grave aconteceu, que deve ser um mau entendido e o homem voltará em breve. “Sweet Charity” acompanha o trajeto de alguém buscando amor nas desgraçadas ruas de uma cidade cheia de pessoas que desprezam gente como ela.
“(Hey) Big Spender” está na minha mente desde que me conheço por gente. A canção já foi regravada nas vozes de gigantes como Shirley Bassey e Peggy Lee, além de ter sido cantada pelo Queen em alguns shows ao vivo como Wembley. De uma forma ou de outra ela sempre esteve por aí, como no meu ensino fundamental, quando um professor de teatro entusiasta por musicais e por Bob Fosse planejou uma interpretação dela em uma peça da escola. Ensaios e ensaios e o rádio tocando a música repetidas vezes até que os alunos começassem a cantar por conta própria repetidamente. Ao menos era uma canção das boas e ao invés de entrar para a lista do desprezo eterno, acompanhou-me ao longo dos anos até que me perguntei de onde ela saiu originalmente. “Sweet Charity” nasceu como um musical da Broadway dirigido por Bob Fosse e eventualmente foi adaptado para o cinema por ele mesmo. Não havia como dar errado, já que ele é o diretor de “Cabaret” e “All That Jazz“, certo?
Não. Um amigo até tentou me alertar anos atrás, mas não acreditei que “Sweet Charity” pudesse ser ruim como ele disse. E realmente não é, assim como não é grande coisa. O filme demonstra ser problemático desde seus primeiros momentos ou, no mínimo, aproveita-os mal e não consegue causar uma boa impressão nem conquistar o espectador a fim dele ter certo nível de interesse pelo resto da obra. É como um velho clichê de Hollywood: o final tem que ser bom, mas se o começo também não for ninguém vai chegar até ele. Este não é o único problema deste musical, é apenas um gostinho do que viria a perdurar pela maior parte do tempo, o estigma do desinteresse dificultando a longa jornada da audiência. Isto é, longa no sentido figurativo e literal: são 149 minutos que parecem se arrastar por bem mais do que isso.
“Sweet Charity” começa com uma abertura música típica dos Épicos, uma imagem estática de Shirley MacLaine com cara de trapalhona e um trecho da trilha sonora tocando por uns minutos. Mas de Épico não há nada aqui, nem mesmo por se inspirar em uma das grandes obras do cinema italiano: “As Noites de Cabíria“, de Federico Fellini. Um dos melhores filmes do diretor, ele conta a história de uma prostituta buscando amor em suas desventuras pela noite de Roma. Tocante, de partir o coração e com muito a dizer para além da premissa nuclear, ele não poderia passar mais longe do que eventualmente foi feito nessa releitura americana espalhafatosa. Chega a ser clichê dizer que as refilmagens americanas são piores, mais burras e mais caras, porém só é clichê porque de fato aconteceu assim várias vezes. Este é um caso que se encaixa nessas características em quase todos os sentidos.
O roteiro empresta a premissa e cenas específicas sem construir em cima disso, ficando apenas na busca por um amor do começo ao fim sem desenvolver a protagonista tão bem quanto antes. Charity dança num bar de reputação duvidosa e é iludida no amor, vive se frustrando até que encontra uma chance de dar a volta por cima. Fim. É praticamente a mesma coisa da contraparte italiana com a elementar diferença de abordagem. De um lado, uma trama baseada na tragédia do acaso da vida de uma mulher que apenas vaga por aí sem saber direito o que quer; de outro, uma garota entusiasmada por romance a despeito de todas as frustrações, desejando alguém para casar com ela. A situação da personagem vai de uma falta de propósito na vida e talvez um vazio existencial para a ausência de romance em um sentido quase juvenil, como se fosse um objetivo concreto e consciente. Shirley MacLaine ainda dificulta a situação ao personificar o exato simplismo do roteiro em sua personagem. Talvez isso devesse significar uma boa atuação por conta da atriz trazer à vida o que está no papel, exceto pelo fato do papel conter uma protagonista rasa e que parece se esforçar muito para ser apelativa, carismática ou relevante com seu espectro limitadíssimo de emoções, indo de animada a extática.
Quanto aos números musicais, o suposto atrativo principal de “Sweet Charity”, eles também são falho. Pelo menos metade deles são fracos e chatos, fizeram eu me sentir como uma pessoa que odeia musicais e pensa “De novo não” quando um personagem domina o quadro e começa a cantar. “My Personal Property” é o primeiro de todos e chega a doer de tão sem sal e pouco inspirado, estrelando o talento vocal medíocre de MacLaine em algo que parece mais um improviso de mau gosto. Outros não chegam tão baixo nem se destacam positivamente, como “It’s a Nice Face”, “Sweet Charity” e “I Love to Cry at Weddings”. Apenas tomam espaço como várias outras seqüências dessa narrativa extensa e cansativa, que testa constantemente a determinação para continuar assistindo do espectador.
E quanto a “(Hey) Big Spender”? Não foi daqui que ele veio? Pois bem, é só por causa dele e alguns poucos outros números que “Sweet Charity” se salva de não ser um filme bem pior. Quando tudo parece perdido, números incríveis como ele e “Rich Man’s Frug” mostram a genialidade da direção e das coreografias de Bob Fosse, que se fariam mais evidentes em trabalhos posteriores. Este último número, por exemplo, é simples em teoria: um grupo dançando ao ritmo de música instrumental. Mesmo assim, não há como compará-lo com vários outros números mais ambiciosos e complexos porque seria injusto com estes outros. “(Hey) Big Spender” e sua inteligente brincadeira com a sobreposição de versos unida à dança e função narrativa, então, é ainda mais incomparável. Definitivamente não parecem pertencer junto com outras mediocridades.
“Sweet Charity” foi um dos principais símbolos do declínio dos musicais americanos durante os Anos 60 e 70 junto com “Hello, Dolly!”, “Lost Horizon” e outros. O golpe foi forte e quase quebrou as pernas da Universal: a bilheteria rendeu só 40% do orçamento de 20 milhões de dólares. Seria um símbolo do gosto do público mudando com o passar dos anos? Talvez, mas não é de se descartar que a bilheteria seja reflexo de um filme longo demais pelo tanto que tem a dizer e do sucesso mediano na proposta básica de ser um musical. Gastar muito tempo para ver algo que não vale a pena soa como um bom motivo para deixar de gastar em um ingresso.