Já não é mais novidade um filme de fuga de prisão. Ainda em 1973, talvez não fosse mais também, pois trabalhos famosos como “Stalag 17“, “Cool Hand Luke“, “La Grande Illusion” já haviam saído nos anos anteriores, além de “The Great Escape” do próprio Steve McQueen. Nenhum destes foi lembrado ao longo dos anos por serem pioneiros em seu tema, contudo. É qualidade que faz a diferença quando tantíssimos outros similares caíram no esquecimento por não executarem bem o mesmo o conceito: homem preso tentando escapar a qualquer custo de um lugar desumano habitado por pessoas sem a mínima preocupação sobre condições decentes. É quase sempre essa história, mas “Papillon” é um que vale a pena ser lembrado.
Henri Charrière (Steve McQueen), mais conhecido como Papillon, é acusado de matar um cafetão e condenado a cumprir pena em uma infame prisão na Guiana Francesa. Nela, as penas dificilmente são cumpridas porque os prisioneiros normalmente morrem antes de chegarem à liberdade. Os calmos sofrem com as condições desumanas de comer pouco e fazer trabalho braçal debaixo de um sol imperdoável; já os ousados sofrem punições ainda mais severas por se rebelarem e tentarem escapar, alguns sendo mortos ou passando pelo pior que a prisão tem para oferecer. Dentre todos os prisioneiros, Papillon não é do tipo que aceita injustiça calado.
Novamente, não há nada de muito diferente do que já se viu tantas outras vezes. O protagonista não considera ficar na prisão uma opção, preferindo a morte à sofrer abusos diariamente nas mãos de gente mal intencionada. Ele não estaria preso se o sistema fosse justo, em primeiro lugar, então não há razão para ele passar uma boa parte do resto da vida aceitando murros na boca e uma miséria de comida como símbolos da justiça e da lei. É apenas lógico tentar fugir. “Papillon” não oferece muita coisa no campo inovação e, sim, é injusto apontar isso como um defeito em um filme com 46 anos de idade. Assim, não se trata de dizer que isso é um problema, e sim algo a se manter em mente por conta de não haver inovação nem mesmo se o contexto da época for considerado, exceto talvez pelo orçamento farto, por ser adaptação de uma autobiografia popular e por trazer dois gigantes em Steve McQueen e Dustin Hoffman.
Continua sendo uma proposta artisticamente direta ao ponto de um conceito popular. Mesmo assim, a presença destes fatores proeminentes não é de ser ignorada e mostra razão para isso no foco na dupla principal e em toda a aventura notavelmente grande em escopo. Basta comparar “Papillon” com outro filme de prisão famoso para perceber as diferenças de competência. “Escape from Alcatraz” também começa com uma cena do protagonista a transporte da prisão junto com um monte de outros presos, o lugar é apresentado na sequência como uma fortaleza impenetrável e inescapável; então aos poucos se desenvolve um plano abusando das brechas na segurança, o qual eventualmente é executado. É a mesma coisa, essencialmente, pecando por ser isso com pouco mais. É como um prato de comida executivo: há o arroz, o feijão, um bife grelhado e fritas, talvez um pouco de farofa. Depois da refeição, não há do que reclamar, apenas uma impressão de que fizeram o mínimo necessário para não gerar insatisfação. Nada como lembrar do restaurante por causa de seu feijão cremoso e saboroso como poucos, por exemplo.
Pois bem, não é isso que acontece em “Papillon” . Ele consegue ser melhor em todos os aspectos comparáveis e impressionar onde seu similar não consegue. Primeiramente, com os protagonistas. Dustin Hoffman já é um coadjuvante mais memorável que qualquer outro da obra de Don Siegel, o que não é muito difícil pelo simples fato dele ter um arco perceptível e uma personalidade que vai além da caracterização física e alguns traços psicológicos exagerados. Ele é mais do que uma prótese de calvície e uma dentadura esquisita com certa folga, só não chega perto de ter tanto destaque quando Steve McQueen como o protagonista. Não é à toa que este seja um dos filmes freqüentemente associados ao seu nome, pois McQueen traz uma performance irreprovável e sem margem para ser criticada, ainda que no geral o papel não seja dos mais exigentes. Às vezes só requer que o ator mantenha a pose inabalável, outros momentos são um pouco mais complexos e demandam um pouco mais de esforço físico ou reações específicas do ator — quando ele passa por maus bocados, por exemplo. O mais importante é ele conseguir sustentar um sentimento de presença forte, alguém que demonstra ter as qualidades necessárias para sobreviver como algo inato, natural.
Atualmente, o detalhe de ser baseado em um livro bestseller já não tem tanta força. O livro até chegou a ser criticado por fidedignidade e mesmo assim manteve certa reputação como um bom livro, mas nem de longe como um jovem clássico da literatura, nada que tenha continuado no papo do povo. “Papillon”, o filme, costuma ser mais freqüentemente lembrado na cultura popular, até porque a refilmagem de 2017 reforça isso. Embora não possa comentar sobre o que há ou não há no livro, acredito que sejam mais marcantes as imagens de Steve McQueen se jogando num manguezal e desviando por pouco de balas ou tentando dominar um jacaré por conta própria. Com uma fotografia naturalista e crua, de pouca estilização visual, a obra faz o que talvez o livro tenha falhado a longo prazo: deixar uma marca. São as aventuras menores dentro da grande odisséia do protagonista que vêm à mente quando se pensa na obra.
Não menos importante é a trilha sonora de Jerry Goldsmith, que segue um estilo parecido da cinematografia e não tenta chamar muito a atenção para si. Nem mesmo sua presença é constante, muitos momentos são acompanhados só pelos sons naturais de cena e do silêncio da música; já as melodias que acabam marcando presença costumam se misturar à atmosfera que elas mesmo ajudam a criar sem necessariamente cometer o erro de se apagar por meramente confirmar os sentimentos de cena. No geral, “Papillon” funciona melhor que a maioria dos similares do seu gênero simplesmente porque vai muito bem na execução. Os problemas de ritmo aqui e ali não são ignoráveis e podem ser notados na forma de momentos em que a obra parece esfriar, às vezes com dificuldade de retomar o andamento. Nada que estrague a experiência definitivamente, todavia.