Não fazia idéia de que “At Eternity’s Gate” era mais uma biografia de Vincent Van Gogh. A primeira associação gratuita e totalmente não relacionada foi “Project Florida“, pois também sua única indicação ao Oscar foi para Willem Dafoe. Confusões à parte, vale assegurar os preocupados que a trama não é apenas uma readaptação daquilo que foi visto em “Loving Vincent” usando atores e cenários reais para falar exatamente a mesma coisa. Praticamente a trama toda se passa antes do pintor passar os últimos meses de sua vida em Auvers-sur-Oise na companhia do Dr. Gachet, então as obras mais ou menos se complementam. Primeiro com Dafoe expondo o estado fragilizado do artista e depois com as pinturas ganhando vida própria e investigando outra parte de sua história.
Vincent Van Gogh (Willem Dafoe) abomina a idéia de viver em Paris e se juntar ao movimento de narizes empinados auto-intitulados artistas. Todos só querem saber de massagear seus egos e se sentirem importantes enquanto Vincent busca pintar aquilo que gosta, expor seu trabalho e vender suas pinturas para quem quer que as aprecie. Sua saída é se mudar para o pequeno vilarejo de Arles no sul da França, onde ele encontra toda a natureza que o faz se sentir tão à vontade. Presenciar cada pedaço de terreno e pintar aquilo de acordo com sua própria visão é tudo o que ele deseja, porém sua personalidade fora do comum logo se faz notar entre a população e traz interrupções à sua paz e seu trabalho.
A única indicação ao Oscar para Willem Dafoe faz justiça aos méritos de “At Eternity’s Gate”. É ele quem comanda as melhores cenas e protagoniza os pontos altos da obra, demonstrando perfeitamente a qualidade do convencimento sem deixar por um momento que se lembre de quem é o ator por trás do papel. Isso porque sua fisionomia é bem reconhecível e, além do mais, ele tem uma série de papéis populares debaixo do braço que poderiam desviar a atenção do espectador e fazê-lo não comprar tão bem a idéia de que ele é Van Gogh — até Jesus Cristo ele já interpretou, afinal. A coloração de barba e cabelos para ruivo e o figurino camponês são apenas exemplos de como a caracterização física do personagem faz toda a diferença na forma como se enxerga o ator em cena, deixando-o com a aparência correta, no mínimo.
Mas é claro que o verdadeiro diferencial é a interpretação em si. Dafoe introjeta os valores e a personalidade peculiar do artista francês em sua essência, desde o nível mais básico e primordial da visão de mundo. Isto é, aquilo que diferencia aquela pessoa do velho alfaiate da quadra ao lado, da camareira da estalagem e da professora do jardim de infância. Por trás de tanto ímpeto criativo há algo o alimentando e dando origem à iniciativa de reproduzir a realidade percebida através de um filtro singular. Dafoe mostra que esse algo existe, algo que “At Eternity’s Gate” não ousa definir concreta e absolutamente por conta da proposta claramente surreal de afirmar qual a palha do fogo de uma pessoa, uma que morreu há mais de 120 anos. Mantendo-se no campo despretensioso da sugestão, aborda-se o tema de forma segura e ao mesmo tempo plausível e profunda.
Com a tranqüilidade no falar do ator, um discurso sobre natureza e a interação transcendental do personagem com ela desvia de ser uma típica fala freqüente dos entusiastas por meio-ambiente e se torna, de fato, a expressão sincera de um homem falando do que faz. E quando ele eventualmente vem a sofrer, seu sofrimento tem nome, sobrenome e a personificação cabível de uma pessoa desmontando psiquicamente. Melhor do que isso, a compreensão de Van Gogh não é gratuita e se mostra fortalecida por desenvolvimento de personagem, o qual dá base e introduz momentos pertinentes para que informação seja mais que exposição. O roteiro de “At Eternity’s Gate” cobre ambas essas bases e orquestra os momentos da vida do artista a fim de construir um quebra-cabeça psicológico de tudo que ele passou durante seus últimos e mais importantes anos de vida.
A história ostenta estes acertos, mas nem sempre é assim. Ela começa um tanto largada. Inclusive, a cena de abertura mostra a pretensão de dar um gosto de mistério ao mostrar sem contexto uma cena muito mais tardia na cronologia. Só então “At Eternity’s Gate” começa e, mesmo assim, não de forma totalmente satisfatória. A narrativa visual inicia decepcionante, parecendo principalmente superficial e pouco planejada por mostrar imagens que até possuem coesão com o contexto geral da seqüência, mas não muito mais do que isso. É uma conexão fraca e pouco engajante, nada que instigue o espectador e dê a impressão de progresso ou construção de significado. Não é o mesmo que acontece mais adiante, pois a narrativa como um todo melhora e demonstra suas facetas merecedoras de elogios aos montes. Quando a exploração do protagonista se aprofunda, desperta-se o interesse tão mais facilmente do que nas tomadas subjetivas prévias.
A única coisa que realmente não se faz justificável de forma alguma é a cinematografia errática de Benoît Delhomme. É o tipo de trabalho que chama a atenção para si por fazer algo diferente da maioria, em um primeiro momento, e por não demonstrar um objetivo na seqüência. Sem demonstrar o que se busca atingir, o próximo passo é ponderar sobre a intenção do autor. Mesmo assim, falho em achar uma boa razão para realizar movimentos simples usando câmera de mão, que traz junto consigo a característica instabilidade, uma tremedeira em cenas pouco complexas e até supostamente estáticas. Talvez uma forma de ilustrar o estado mental de Van Gogh? Improvável, pois tal decisão estética aparentemente reverte ao padrão conforme “At Eternity’s Gate” progride, sendo inversamente proporcional ao estado mental do pintor.
“At Eternity’s Gate” tem seus defeitos. Ele começa fraco em vários aspectos, todos estes ligados de alguma forma à narrativa e ao início da jornada de Vincent Van Gogh. O senso comum descreveria como artístico demais, ou seja, subjetivo e solto sem demonstrar uma progressão notável na trama. Felizmente, isso passa e a história como um todo só volta a deslizar em um momento pontual e facilmente identificável, quando o pintor expõe um insight curiosamente certeiro sobre a forma como o mundo o tratou em vida e em morte. Apenas um aspecto se mantém sólido e consistente em termos de qualidade do começo ao fim: Willem Dafoe, sem dúvida alguma o forte desta obra e merecedor de sua indicação.