“Isle of Dogs” é um filme sobre cachorros. Tudo começa quando o prefeito Kobayashi da cidade Megasaki, vindo de uma dinastia que venera gatos, aprova uma lei banindo todos os cachorros da cidade para uma ilha que serve como lixão. A razão dessa manobra radical é uma gripe canina, supostamente com risco de ser transmissível para humanos, que faz sua primeira vítima com o cão guarda-costas de Atari Kobayashi, protegido do prefeito. Mesmo com protesto de alguns, o pesadelo se concretiza e os animais são isolados da cidade com risco de serem exterminados na sequência. Sem demora, Atari se infiltra na ilha para tentar achar seu melhor amigo antes que seja tarde.
Praticamente todo filme tem alguma inspiração por trás de si, algum evento ou interesse pessoal por parte do diretor para querer dedicar tanto tempo a uma coisa só. Certamente não é uma decisão arbitrária quando há tanto esforço e tempo envolvidos até mesmo para realizar o pior dos projetos. Nem que seja algo pontual como dinheiro, há uma razão. Enquanto os filmes de Martin Scorsese, por exemplo, costumam falar das peculiaridades da vida dos ítalo-americanos de várias formas, a inspiração de “Isle of Dogs” parece não ser nada mais, nada menos que a vontade de criar uma aventura de cachorros porque o criador provavelmente gosta de cachorros. É simples, mas não uma idéia merecedora de descrédito por isso.
Há poucas coisas melhores que uma obra bem sucedida em sua proposta. Pode ser ambiciosa, que tenta conquistar o mundo e a lua e desafia o possível quando alcança o feito sem deixar uma vírgula fora do lugar como espaço para críticas. Alternativamente, pode ser uma obra que se apresenta como é e segue fiel nessa postura, simples e sem pretensões homéricas e fazendo o melhor que pode. “Isle of Dogs”, o segundo caso, transmite um sentimento de que seu grande objetivo é fazer uma história sobre cães em apuros funcionar divertidamente; sem a preocupação de quebrar paradigmas da animação com alguma técnica revolucionária e sem querer abordar problemas sociais usando metáforas complexas. São animais em perigo, um garoto tentando salvá-los e um vilão sabotando todas as tentativas honestas dos heróis.
A equação tem mais do que isso, claro. Esse é apenas o esqueleto de uma experiência que leva como inspiração a carreira de mais de 50 anos de Akira Kurosawa, o diretor japonês mais conhecido da história, e o trabalho de estúdios orientais como o Ghibli. Aos pacientes e atentos, são vários os momentos em que enquadramentos, temas e cores resgataram as obras do lendário diretor, embora em nenhum momento essa inspiração se mostre como uma diretriz primária da história. É mais como uma curiosidade. Wes Anderson admite tal referência assim como fala que “Isle of Dogs” começou com os cachorros, antes de qualquer coisa. Todos estes elementos estão para a narrativa principal assim como os quadros estão para o resto do cômodo: eles pertencem ao ambiente e possuem presença, mas antes deles vieram a estrutura, a parede e a tinta antes do tal objeto entrar em jogo.
Pensar nas referências certamente não é o que prende o espectador à experiência. “Isle of Dogs” é marcante por aplicar as melhores qualidades do diretor, seu humor alternativo e composições sempre meticulosas. Está mais para seu filme anterior, “Grand Hotel Budapest“, do que para a desorganização de “The Life Aquatic with Steve Zissou“, ainda que não chegue no mesmo nível do primeiro. Começa pelo fato do filme conseguir ser engraçado praticamente sem esforço, em grande parte pela orquestração dos movimentos em stop motion, já característicos por natureza e mais ainda quando se busca dar um tom caricato a eles. Como em um desenho animado incrivelmente detalhado e de orçamento farto, cria-se cada elemento com o exagero em mente. É somando todos em uma mesma história que a proposta simples funciona tão bem.
O prefeito tem uma expressão rigidamente austera quase diretamente tirada das ilustrações folclóricas de demônios japoneses, até fala com a clássica voz grave e afiada como quem quer reafirmar sua posição vigorosa. Enquanto isso, os únicos personagens a falar inglês — teoricamente, a única língua entendida pelo espectador — são os cachorros. É quase como aqueles desenhos em que os pais falam besteira ininteligível e apenas as crianças podem ser entendidas, só que com uma virada a mais para dar um último toque de humor nessa dinâmica. E é claro que não se pode esquecer dos maiores responsáveis pela graça de “Isle of Dogs”: o elenco de dublagem. Novamente, Anderson cai no exagero de chamar pelo menos metade dos atores de renome em atividade para papéis pequenos e outros até ínfimos. É o tipo de exagero que não prejudica em nada além do bolso dos financiadores, então tudo bem. Os melhores se fazem notar rapidamente, como a dublagem absolutamente precisa na comédia seca — “deadpan” ou “dry wit”, do inglês — de Bryan Cranston; exatamente aquele tipo que tem graça por falar algo num tom completamente normal e sem emoção. Não só isso, como é possível enxergar Cranston no papel a despeito de todo o estilo da produção e, bem, dele ser um cachorro vira-lata.
Curiosamente, “Isle of Dogs” foi duramente criticado por supostamente cometer apropriação cultural e estereotipar a cultura japonesa, além de introduzir um personagem branco como salvador da pátria. Sem entrar no mérito de justificar e contrapor tais acusações prepósteras em detalhe, parece inapropriado acusar uma obra despretensiosa e brincalhona como essa de qualquer maldade. A intenção não está ali e quaisquer ditos problemas são apenas fruto da condensação de alguns elementos para criar um universo carnavalesco e surreal. Seguindo esse raciocínio, é questão de tempo até alguém se ofender com e problematizar o Zé Carioca como uma representação caricata do brasileiro. Embora sem dúvida já se tenha comentado disso.
“Isle of Dogs” não tem muito apelo. Tudo começou com o amor pelos animais, mas, bem, quem não gosta de cachorros? Mesmo os mais amantes dos animais dificilmente se deixam conquistar facilmente por uma obra envolvendo eles por achar que será uma de duas possibilidades: uma história bobona, sem apelo, feita para crianças ou para deixar passando na televisão para os cães da casa assistirem; ou uma história triste, a qual nem sempre é o que um amante de bichos quer ver. Wes Anderson consegue criar um universo próprio e relacionável, ao mesmo tempo que encaixa algumas inspirações louváveis sem deixá-las roubar atenção do entretenimento, aquilo que realmente importa. Não é o ápice da genialidade, da criatividade ou da animação. É um filme estiloso, bem humorado, com bonecos muito bem feitos e uma narrativa que amarra todos os elementos organicamente enquanto a trilha sonora ajuda a manter essa união. Já é mais do que se pode pedir com tantas decepções por aí.