Wilson Fisk, mais conhecido como o Rei do Crime, tem novos planos. Debaixo de sua torre no centro de Nova York jaz a estrutura titânica de um acelerador de partículas, uma máquina para acessar dimensões paralelas e resgatar a mulher e filho que Fisk perdeu no passado. Mas o plano dá errado e resulta em diversas anomalias temporais, incluindo o aparecimento de outros Homens-Aranha na realidade de Miles Morales (Shameik Moore), que recentemente ganhou seus poderes. Junto do Peter Parker (Jake Johnson), da Mulher-Aranha (Hailee Steinfeld) e outras versões alternativas, Miles busca uma forma de frustrar os planos do Rei do Crime antes que danos irreparáveis sejam causados no espaço-tempo. Assim começa “Spider-Man: Into the Spider-Verse”.
Quando os primeiros trailers de “Into the Spider-Verse” saíram, era comum ver reclamações sobre a taxa de quadros e a animação esquisita resultante. Parecia que não seguir o padrão de 24 quadros resultava em uma animação engasgada e pouco fluída, algo pouco interessante para uma sobre um herói ágil e constantemente em movimento. Por sorte, essa primeira questão e possível desincentivo não é tão desconcertante quanto os trailers sugeriram. A diferença é que um clipe de 2 ou 3 minutos condensa uma experiência dezenas de vezes mais longa sem necessariamente fazer jus ao produto final, como exacerbar a questão dos quadros por segundo. A taxa é uma decisão artística intencional para homenagear o estilo de animação peculiar de stop motion, animação à mão e até motion comic, ainda sendo passível de crítica se não fossem dois motivos: os olhos se acostumam rápido e a taxa aumenta nas cenas mais agitadas.
Surpresa é ver que essa impressão negativa a respeito da animação é subvertida a ponto de toda a parte visual se tornar o grande atrativo de “Into the Spider-Verse”. Claro, execução técnica nem sempre afeta diretamente o lado artístico das imagens, ainda que possa atrapalhar em alguns casos piores. Um jogo rodando a menos 30 quadros por segundo, o mínimo aceitável, pode ter uma direção de arte louvável; pode ser pausado para revelar uma imagem artisticamente de bom gosto e, como ele, o filme também demonstra infinitas possibilidades de fazer o mesmo. Seria um belo consolo se falhasse a dinâmica pretendida de imagens em movimento, o que não é o caso. Encontra-se uma variedade visual no mínimo impressionante, provavelmente mais para aqueles familiares com processos de animação e de ilustração. Este filme tem tudo isso e mais um pouco.
De tradicional e comum não há nada. Até mesmo conteúdos claramente referenciais a estilos específicos de desenho são encaixados e reorganizados num todo como se fossem novidade. “Into the Spider-Verse” harmoniza estilos e artifícios visuais característicos de quadrinhos sem destoar da linguagem cinematográfica; breves pausas de quadro simulando uma página de quadrinho, usando também toques visuais como onomatopéias e grafismos, cumprem sua função de fazer referência à mídia de origem sem deixar isso atrapalhar a narrativa visual dominante. De um jeito ou de outro e de mais deles do que se pode imaginar, o filme inova e impressiona, talvez até vai longe demais em querer mostrar quão intenso consegue deixar seus visuais.
Com isso fora do caminho, tudo parece pronto para a experiência ser aproveitada como deveria. E é claro que não é tão simples assim. “Into the Spider-Verse” relembra uma discussão não muito polêmica, mas ainda levantada vez ou outra, principalmente na clássica situação do pai ver uma animação passando na televisão e perguntar se o filho já não passou da idade de ver desenho. Normalmente, é uma situação facilmente resolvida ao dizer que animação também funciona para adultos, que forma não limita público e apelo. O que costuma transcender a aparente barreira estabelecida pelos visuais caricatos e coloridos é a história e seu conteúdo, os assuntos abordados e a universalidade do argumento. Neste caso, contudo, não acharia tão errado dizer que está mais para um desenho animado mesmo.
Mas filmes de super-herói não costumam ser assim mesmo, favorecendo adrenalina, efeitos e ação sobre substância de enredo? Definitivamente. A questão é que uma animação tem limitações apenas onde quer, pode ignorar todas as leis da física, inventar a anatomia que quiser para seus personagens ou escolher cenários de acordo com a demanda do roteiro, sem pensar na praticidade de ter que construir e concretizar os planos com ferramentas reais. E quando a obra decide abraçar um tom, basta moldar todos os outros elementos em torno disso. No caso de “Into the Spider-Verse”, a decisão dominante aparente foi de tentar ser engraçadinho sempre, usar toda e qualquer oportunidade para inserir um pouco mais de humor na história. Por mais que pareça uma decisão natural, dado o histórico do Universo Cinematográfico Marvel, a execução se mostra bem diferente.
O maior problema dessa proposta é que freqüentemente as tentativas não têm graça. São simpáticas, bem-humoradas, bobinhas e nada mais que isso; nada que acrescente de forma significativa à história ou realmente tenha sucesso em tirar umas risadas. Além disso, tais piadas na prática realmente lembram o humor pastelão, físico e exagerado, de filmes antigos e desenhos animados, em especial. A primeira cena de Peter Parker — a mesma mostrada depois dos créditos de “Venom“, péssima escolha — demonstra perfeitamente a tendência de “Into the Spider-Verse” de transformar qualquer evento em uma desculpa para a comédia. A seqüência inteira é baseada em trapalhadas e palhaçadas colocando os personagens em altas confusões, exatamente do jeito pateta que se imagina; nada a ver com a personalidade do próprio Homem-Aranha de fazer piadas ruins nas horas mais bizarras. Eventualmente, resta o sentimento de que o roteiro não segue o mesmo caminho da diversidade dos visuais, estando no campo das gracinhas do começo ao fim.
“Spider-Man: Into the Spider-Verse” era uma ótima oportunidade de expandir a mitologia do personagem no cinema sem ter que recomeçar a história e mudar de ator e repetir as coisas novamente. Mais que isso, são vários cabeças de teia numa mesma história, possibilitando uma visão interessante de como um mesmo herói poderia ser diferente de acordo com as circunstâncias. Então nota-se que algumas versões estão ali pra fazer número e outras… para fazer graça. Oportunidades de explorar um pouco de drama são trabalhadas rapidamente e sem impacto, outras são simplesmente ignoradas; perde-se a chance de tocar em pontos dramaticamente fortíssimos, como no arco “Homens-Aranha” do gibi. Mas nada, nem a infeliz decisão de se apoiar demais no humor é pior que uma coisa: o design do Rei do Crime misturando Humpty-Dumpty com o Corcunda de Notre-Dame usando esteróides.