Como diabos isso foi acontecer? Sim, por trás desse texto há uma pessoa indignada com a vitória de “Shakespeare in Love” sobre outros quatro filmes melhores; uma que está 20 anos atrasada, sim, mas não menos embasbacada com a decisão da Academia de dar o prêmio principal da noite e outros seis prêmios. Para os brasileiros é especialmente doloroso e enfurecedor porque Fernanda Montenegro, a única atriz brasileira a ser indicada ao Oscar até hoje, perdeu a chance de dar o primeiro Oscar a um brasileiro. Em seu lugar, venceu Gwyneth Paltrow como o interesse romântico de William Shakespeare nesta história sobre as inspirações de um dos escritores mais famosos de todos os tempos, talvez o mais.
A vida de William Shakespeare (Joseph Fiennes) tem se resumido a papéis amassados e tinta desperdiçada enquanto os prazos para escrever uma nova peça ficam cada vez mais apertados. Ele simplesmente está sem idéias, acreditando que seu dom de escrever finalmente chegou ao fim e, com isso, sua carreira como dramaturgo. William percebe que não irá a lugar algum enquanto estiver com o coração vazio, então sai em busca de uma musa para preencher seu vazio existencial e resgatar seu talento dormente. Sem saber que essas coisas não se acham por vontade própria, ele finalmente encontra amor onde menos esperava.
Antes mesmo de qualquer comparação, é sensato avaliar “Shakespeare in Love” pelo que ele é. Aliás, ele nem precisa de comparações para que se demonstre o quão decepcionante e fraco ele é por si; certos elementos se entregam sem precisar de outros como parâmetro. Primeiramente, vale dizer que a idéia por trás do longa é ser um paralelo direto entre cinema e teatro de forma que alguns mecanismos do segundo são utilizados no primeiros e integrados como parte do estilo de direção de John Madden. Ele tenta conceber um ar teatral ao estilo de atuação ocasionalmente, aquele em que movimentos são feitos de forma brusca acompanhando expressões forçadas e entrega cômica de falas. Assim, a tentativa é transformar o humor em algo relativamente similar ao estilo Chaplin, usando um exemplo do cinema, algo diferente das formas de comédia mais comuns hoje. Apenas reforçando, tentativa.
É tranqüilamente possível imaginar essa decisão estilística como justificativa ou contra-argumento para críticas, tanto que quase se escuta os defensores dizendo que as atuações não são ruins, apenas diferentes. Seu maior problema não é escolher o teatro como inspiração porque o bom teatro não se define como uma concentração de atuações lamentáveis. Nele, atores bons demonstraram inúmeras vezes situações inegavelmente humanas com fidedignidade, exatamente o elemento que falta em “Shakespeare in Love”. Ser engraçado nunca foi demérito por si, então se algo dá errado é porque não se está sendo engraçado. O filme tenta usar da comédia física, como um personagem conversar com outro e este segundo responder desmaiando sobre a mesa de tão bêbado, porém até essa simples interação soa falsa e sem graça — assim como a maior parte do filme. E não é só no humor, vários personagens são escritos superficialmente e interpretados de forma que nem se tenta aprimorar esse primeiro aspecto. É como se um personagem escrito para ser um bobão tivesse de ser isso e nada mais. Não um bobão engraçado, não um bobão esquisito, não um bobão ímpar, apenas um bobão.
O próprio Shakespeare é apresentado como um personagem curiosamente insosso e sem atrativos que chamam a atenção por desenvolver a personalidade de uma figura lendária como ele, dando a ele algo mais do que uma reputação colossal e uma forma física além do único retrato seu que existe. Colocar um brinco e roupas vitorianas em Joseph Fiennes está longe de ser o bastante, então é introduzida uma idéia conhecida dentro do universo da arte: a falta de criatividade. Como poderia Shakespeare, o mais conhecido e respeitado dramaturgo de todos os tempos, sofrer de bloqueio criativo? Não é possível que uma mente como a dele, a mesma que criou obras encenadas e reinterpretadas séculos depois, possa ter sofrido por com problemas criativos! Bem, ao menos se deve conceder a “Shakespeare in Love” a ousadia de envolver um grande nome em uma história sobre esgotamento de talento. E só. No final das contas, a mediocridade e falta de inventividade nada tem a ver com o dramaturgo, apenas com essa versão infeliz.
O grande resumo de toda a empreitada envolvendo a busca de Shakespeare por seu talento perdido gira em torno da noção incrivelmente clichê e batida de que um artista precisa de uma musa, amor genuíno em seu coração para alimentar a fornalha das idéias. Só não é pior que dizer que um artista necessita de algum problema mental, existencial, amoroso, social ou de qualquer magnitude significativa para ser produtivo, como se arte fosse uma forma dependente de sofrimento. Pode até funcionar nesses modelos, de certa forma, o que não significa que a dinâmica é simples. Mesmo assim, “Shakespeare in Love” comete o deslize de tratar algo complexo e dificilmente representável como um processo criativo com atalhos. Basta ele encontrar alguém para amar, eis a solução em que ele chega depois de sofrer por aparentemente 30 segundos. É aí que ele eventualmente encontra a Dama Viola de Lesseps (Gwyneth Paltrow), uma mulher por quem sente uma atração impossível de ser ignorada.
Eis que, depois de vários coadjuvantes vazios e um protagonista resumido a uma busca por criatividade convertida em paixão, surge a personagem de Paltrow. Para o protagonista de um filme e para o papel de William Shakespeare propriamente dito, a escrita deixa a desejar e a interpretação de Joseph Fiennes idem, só chegando a chamar a atenção de alguma forma quando seu personagem se deixa levar pelas emoções enquanto trabalha em sua mais nova peça. Surpreendentemente, Gwyneth Paltrow acaba sendo a melhor atriz de todo o elenco com uma performance suave e consciente das demandas do papel em cada momento. Parece que não é muito, levando em conta que todo o resto é uma grande decepção — incluindo Colin Firth em um papel pateticamente forçado — porém é possível conceder que é uma boa atuação. Talvez não para ganhar o prêmio de Melhor Atriz, mas boa, ainda assim.
Os únicos momentos realmente bons dessa história previsível desde seus primeiros momentos é quando o fruto do envolvimento do protagonista começa a dar resultados, ou seja, uma das obras mais famosas do autor. Não me refiro à dinâmica escolhida pelo roteiro de eventos reais da vida do dramaturgo serem passados quase diretamente para o papel, pois isso também é um tanto sem graça. A obra brilha quando uma edição inteligente entrelaça cenas da peça com trechos da vida amorosa de Shakespeare de forma orgânica e natural, sem que o dedo do roteiro aponte referências explícitas em dados momentos do filme. A despeito de pontuais sucessos, ainda é um tanto inacreditável e inconcebível que “Shakespeare in Love” tenha vencido sete Oscars e tirado o prêmio principal de obras incríveis como “Saving Private Ryan”, “La Vita È Bella” e “The Thin Red Line“. É uma decisão da Academia que, com razão, jamais será esquecida.
2 comments
amei a forma como vc odiou o filme, concordo com vc
Como tu escreve uma resenha desse filme, sem ao menos citar a incrível Judi Dench que domina a cena em apenas 8 minutos e leva um Oscar? Até constrange o abismo de talento entre ela e a Paltrow