Quem é Daniel? Até algumas horas atrás, não sabia a resposta para esta pergunta e nem estava preocupado com respondê-la. Talvez fosse apenas mais uma pessoa que entraria na minha vida com a mesma casualidade com que sairia, sem causar nenhuma impressão significativa. Portanto não pensei muito no assunto para além de saber que a vida desse rapaz era o assunto de “Meu Nome É Daniel”, filme de encerramento do 7º Olhar de Cinema. No máximo, fiquei um pouco temeroso de que um documentário dirigido sobre uma pessoa e dirigido por ela mesma poderia ser um pouco autoglorificador.
Felizmente, isso não acontece e a afirmativa do diretor durante sua extensa narração mostra-se verdadeira: a única forma dessa história funcionar é através da voz do próprio rapaz. Ela mostra que por trás de si voz não há arrogância ou soberba, os combustíveis de um discurso que esconde e mostra conteúdo por mera conveniência pessoal, e sim uma honestidade quanto às características de sua pessoa. Ao menos é o que se aparenta. E como a intenção de “Meu Nome É Daniel” é ser um filme, não um atestado íntegro de moralidade, ele merece crédito como tal por mostrar a consistência de uma história que não quebra as regras levianamente.
Inclusive, não daria para dizer que “Meu Nome É Daniel” chega minimamente perto de querer esconder qualquer coisa porque a intenção da obra é justamente o oposto. Daniel Gonçalves, diretor e protagonista, tem uma condição muito peculiar que afeta toda sua coordenação motora. Cumprir tarefas diárias e banais para a maioria, como vestir uma camiseta ou fazer um omelete, são muito difíceis para ele mesmo em idade adulta, fase da vida em que ele e seus pais provavelmente esperavam ter superado as dificuldades surgidas na infância. Desde pequeno, ele sofre com essa deficiência na fala e nos movimentos, mas esta não é uma história expositiva sobre essa condição. Daniel não sabe até hoje de qual mal sofre. Este documentário retrata sua jornada em busca de respostas.
De certa forma, esse é o miolo da história. O rapaz aproveita os benefícios disponíveis atualmente pela medicina para tentar descobrir qual sua condição e, assim, ter um tratamento mais direcionado e eficiente. Entretanto, não é como se ele tivesse ficado a vida inteira sentado esperando um esclarecimento bater em sua porta e se apresentar, até porque antes mesmo de ele ter qualquer poder de decisão nesse assunto seus pais já corriam atrás de médicos para saber o que acontecia. Por isso tal busca pelo diagnóstico é apenas um esqueleto, uma das sub-tramas de uma história muito mais ampla sobre a vida inteira de Daniel. Inclusive, o espectador só fica sabendo dos pais buscando pela cura porque existe muito mais conteúdo além daquilo que é sugerido pela premissa. Isso, por sua vez, poderia ser encarado como um spoiler de “Meu Nome É Daniel” se de fato fosse o caso, e não apenas um fragmento de uma experiência infinitamente mais rica quando vista do que quando rasamente descrita.
Por exemplo, é impossível deduzir pelos parágrafos anteriores que grande parte de “Meu Nome É Daniel” é composto por gravações caseiras feitas ao longo de uma vida inteira. O pai do protagonista sempre teve um lado cineasta levando-o a gravar tudo e nada, desde historinhas bobas até trechos do dia-a-dia em que nada acontece. Nada estando entre aspas, vale dizer, porque nunca dá para saber exatamente o que é relevante e o que não é quando uma história de vida é contada. Ou melhor, quando qualquer história é contada. Quantas páginas de um roteiro de ficção vão para o lixo? Cenas interessantes deletadas no corte final? E voltando ao documentário, quantas horas de vídeo são gravadas sem aparecer no produto final? Mesmo que possível acessar tão longe na infância, usar a memória seria uma tática insegura. Assim como a percepção imediata nunca é a mesma de uma revisita com calma e racionalidade — como brigar com alguém e depois repensar a situação toda depois da poeira baixar — rever as gravações em primeira mão é totalmente diferente de lembrar do evento.
Quem diria que gravações em VHS seriam tão úteis no futuro? São os filmes contidos nela que realmente contam toda a grande história em volta da idéia inicial. Em qualidade baixa, formato de tela quadradinho, imagem trêmula e áudio cheio de ruído; com cinematografia totalmente amadora, coisas completamente não ensaiadas e tudo mais. E não importa. Um bom filme em baixa resolução sempre será melhor que um medíocre em alta. Nada disso impede que uma personalidade divertida como a da mãe de Daniel se manifeste em frente à câmera. Nada impede que ela seja, mesmo que por alguns breves momentos, a mãezona do espectador com seus comentários cômicos. Às vezes eles são mestres do óbvio ou tongos, mas com um fundo de preocupação genuína com o filho; outras ocasiões mostram um lado espontâneo de alguém que nunca tenta fazer piadas e consegue ser engraçada mesmo assim.
Poder acompanhar essa pessoa em momentos diferentes da vida, vê-la evoluindo junto de sua família com o passar dos anos, é uma oportunidade pela qual sou muito grato a “Meu Nome É Daniel”. Apenas um documentário sábio em sua escolha de assunto — e sortudo de ter personalidades tão cativantes envolvidas — alcança uma reação como esta, de intimidade e de proximidade entre o espectador e obra. Mas, enfim, as coisas vão muito bem apenas até certo ponto. Eventualmente chega um momento que quebra a corrente orgânica de sucessos com a sutileza de uma marreta contra porcelana. Quando chega a hora de encerrar tudo, o documentário infelizmente foge de sua linha principal para tentar abordar um discurso relevante, mas sem força alguma aqui porque é incluído brusca e artificialmente. Ao menos tal cumprimento mecânico de agenda dura pouco, ainda que chegue justamente na conclusão, e não fere o resto da obra.