“The King’s Speech” não é nenhum “Shakespeare Apaixonado”, mas nem por isso deixou de ter sua cota de polêmica no Oscar em 2011. Vencer o prêmio de Melhor Filme, por si, não é o problema porque este filme de Tom Hooper está muito longe da mediocridade, mas não há como ignorar a competição. O potencial para decepção era grande demais. Havia expectativa pela primeira vitória de uma animação na forma do esplêndido “Toy Story 3“; Natalie Portman destacando-se num drama psicológico de Darren Aronofsky, “Black Swan”; David Fincher aliado a Aaron Sorkin na cativante história do Facebook, “The Social Network”; e até mesmo o enigmático “Inception”, frequentemente apontado como a obra prima de Christopher Nolan. Nada de cabo de guerra, trata-se de um esquartejamento a cavalo.
Ao contrário do que se pode pensar, imagem pública nem sempre existe sozinha. Desde muito antes da pessoa fazer sua aparição em público, existe preparação, treino, disciplina e até controle de alguns impulsos naturais. O caso do Rei George VI (Colin Firth) não é diferente. Antes de se tornar Rei da Inglaterra, ele foi Albert, ou Bertie para os íntimos: um membro da família real com problemas de gagueira e incapacidade de falar em público desde criança. Essa é a história de como ele superou essa dificuldade enraizada em outros problemas mais atormentadores com a ajuda de um especialista em voz.
As aparências não estão a favor de “The King’s Speech”. Todavia, vale notar que dentre tantas histórias de superação, poucas tratam de uma grandiosa figura da história recente. Essa singularidade nunca será o equivalente de uma narrativa concisa e bem estruturada ao mesmo tempo que é um ótimo primeiro passo. Por que, exatamente? Não se trata de um garoto com o rosto desfigurado por doenças diversas ou mesmo de um sobrevivente de campo de concentração, mas de um rei. Quais dificuldades alguém como um monarca poderia enfrentar em pleno Século 20, sem expansões territoriais megalomaníacas e problemas na gestão de uma nação inteira? Difícil de imaginar, mas são as mesmas do cidadão que quebra as costas por um salário mínimo e nunca será lembrado para além de sua família e dos peões com quem toma uma cerveja no fim da tarde. Nunca pensei que “The King’s Speech” seria uma daquelas histórias que arranca as estrelas do alto do céu para humanizá-las e mostrar que por trás de títulos, honrarias, uniformes lustrosos e saudações existe espaço para sentimentos comuns. Tudo sempre adaptado ao contexto peculiar do personagem, claro, mas sempre próximo da essência compartilhada pelo resto da raça humana.
É quase natural pensar que um rei nunca teria que se preocupar com nada porque, bem, trata-se de um rei. Se quiser trocar de carro, de apartamento, de guarda-roupa, de jato, de esposa, entre outros, basta começar a falar que um assistente realiza o desejo antes da frase ser terminada. Mas não. “The King’s Speech” mostra que, para além da dificuldade relativamente pontual da gagueira, George VI é uma pessoa com alguns problemas inimagináveis para quem vê de fora. A premissa certamente não dá conta de sugerir o grau do problema do homem. Felizmente, a presença de uma pessoa simples e de valores bem sólidos evidencia essa nova camada da condição de aparentemente um rosto só. Nem o próprio rei esperaria que um fonoaudiólogo desenterraria tanta coisa debaixo de seu problema com a fala.
Então surge o real atrativo de “The King’s Speech”: os personagens de George VI e Lionel Logue, interpretados por Colin Firth e Geoffrey Rush, respectivamente. A união de duas realidades tão distintas resulta puro: imagético quando as composições desbalanceadas dos diálogos distanciam os dois elementos; e semântico quando o rei passa pelo aprendizado na base do choque e do conflito. Lionel é provocativo e esperto, sabe onde cutuca e para qual propósito; uma sensibilidade impressionante por si, terapeuticamente falando, cujo efeito é ainda mais forte pelo paciente ser alguém que não costuma ser conduzido ou manipulado. O rei, muito provavelmente acostumado a conseguir as coisas facilmente, encontra certa resistência justamente da pessoa que tem o que ele precisa. Não uma recusa ou oposição gratuita, mas um homem disposto a conversar sem as amarras da etiqueta e da formalidade. O simples pedido de igualdade mostra-se uma ofensa para quem enxerga o mundo do alto de um trono.
Consequentemente, a voz experiente do homem simples contra o homem refugiado em sua comodidade descasca as camadas superficiais da doença para mostrar um homem em conflito há tempo demais. Sim, Lionel ocasionalmente faz pontuações sobre os sintomas da condição e como ela se relaciona à situação presente. Estas são algumas das ocasiões em que o diálogo extrapola no quesito exposição e fala demais quando já havia sido dito o bastante, porém estes golpes não minam o argumento principal de “The King’s Speech” a respeito das dificuldades comuns de um homem extraordinário. O sucesso depende de mais do que palavras ditas, sendo visto principalmente na energia contagiante das interações entre Lionel e George.
Colin Firth faz valer o conceito da humanidade fabricada, moldada rigidamente por uma família que, embora amplamente conhecida, tem muito menos influência e poder do que tinha no passado. Orientada pelas aparências, a família real acaba por negligenciar o carinho com as pessoas em prol de trajes de gala que mostram o real significado de finesse para o mundo. Ele está nervoso em dois sentidos: com medo e irritado. Ao mesmo tempo que reconhece seus sentimentos perfeitamente como insegurança, ele não pode se dar o luxo de se sentir assim, muito menos na frente de uma pessoa qualquer. Geoffrey Rush, por sua vez, encarna o carisma da pessoa verdadeiramente sensível às necessidades do outro sem perder sua própria personalidade no caminho e se tornar o arquétipo do médico altruísta. É possível ver carinho e preocupação genuínos em suas atitudes, assim como um hábito de brincar, tirar sarro e provocar pelo simples prazer do ato.
Como dito, o problema está longe de ser qualidade porque “The King’s Speech” é um ótimo filme. Conquistas encontradas principalmente nas atuações de Colin Firth e Geoffrey Rush, além da relação resultante entre os dois, levam esta história de superação a um nível acima do que pode se esperar numa primeira vista. Mesmo assim, não há como negar que o motivo de tanta polêmica com a vitória no Oscar é a escolha de um filme relativamente padrão sobre tantos outros que foram mais marcantes e discutidos na posteridade, sobre obras de qualidade similar e até superior. Certamente a Academia nivelou por cima em 2011, o que torna a empolgação tão mais intensa do que em anos de escolhas mais óbvias. Talvez não tenha sido a melhor escolha, mas certamente não foi uma ruim.