Tudo bem, a França é o segundo país com mais vitórias no Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. E talvez isso seja um indicativo da qualidade das obras produzidas no país, o berço da Nouvelle Vague e da renovação da crítica cinematográfica durante os Anos 50 e 60, mas nunca fui de morrer de amores pelo cinema francês como os apaixonados pelas teorias de André Bazin e pela revolução do cinema como arte de diretores como Jean-Luc Godard. Pensando por alto, falho em encontrar um motivo concreto para esse ceticismo, se posso chamar assim, o que também não quer dizer que evito assistir obras do país ou falo mal delas de graça. Vejo que ainda há espaço para me surpreender com filmes como “Jules et Jim”, um dos mais elogiados da carreira de François Truffaut.
Jules (Oskar Werner) chega da Áustria na França e logo se torna um amigo inseparável de Jim (Henri Serre). A vida da dupla se resuma a aventuras de todos os tipos pela França boêmia, nas pequenas cidades e seus botecos ou em qualquer lugar com o mínimo de promessa de diversão. Eles vivem satisfeitos até descobrir que nada do que foi visto antes tem a mesma graça depois que Catherine (Jeanne Moreau) entra na vida deles. Logo, Jules se encontra casado com ela e um pouco distante de seu velho amigo, mas não demora para este surgir novamente e retomar a antiga rotina de palhaçadas e bobeiras, a qual sempre teve alguns traços de triângulo amoroso em sua essência.
Falar de triângulo amoroso em termos de cinema é pedir para lembrar de alguma situação incrivelmente clichê em que dois amigos amam a mesma mulher sem saber, às vezes sendo manipulados por esta até que finalmente enxergam as maquinações e decidem não sacrificar a amizade por um relacionamento tóxico. Alternativamente, na sociedade mais liberal de hoje não seria tão surpreendente encontrar um relacionamento à três e ver que as pessoas simplesmente não consideram algo extraordinário. Pois bem, “Jules et Jim” nada tem a ver com qualquer tipo de noção padrão do que significa um relacionamento entre mais de duas pessoas porque este nem mesmo é o foco do filme propriamente dito. Sim, há trechos que podem ser caracterizados dessa forma, mas nada que resuma a obra de forma justa. Dizer que simplesmente se trata disso é uma simplificação tosca de uma relação bem mais complexa.
Começa pelo fato de nenhum dos dois homens do título serem extraordinariamente cativantes. Claro, eles não chegam a ser chatos, sem graça ou completamente desprovidos de carisma, mas de forma alguma diria que o destaque verdadeiro de “Jules et Jim” é algum dos dois. Mesmo porque a dupla carrega o filme sozinha por um tempo e faz de sua amizade um dos pilares chacoalhados pela tormenta por vir. Assim, seu papel acaba sendo mais do que coadjuvantes, ainda que seu impacto final não seja lá muito grande. Eles estão entre estes dois pólos, estabelecem uma parte daquele universo quase fantasioso em que amigos passam o tempo todo juntos sem preocupar-se com os problemas do mundo moderno; bebendo e fumando sem nenhum tipo de vício, praticando atividades aleatórias — como artes marciais numa tarde ensolarada — simplesmente porque parece ser uma boa idéia. Se existe uma curiosidade por aquele universo e suas regras muitíssimo agradáveis, em que dinheiro não falta e sobra tempo para correr atrás de sonhos e paixões simples, é porque tudo começa com eles.
As atuações de Oskar Werner e Henri Serre transmitem justamente este sentimento de despreocupação de jovens que aprenderam a, de alguma forma, organizar suas vidas a ponto da fatia boa sempre ser proeminente. Claro que tudo pode ser mero capricho da narrativa de não mostrar o lado ruim da vida, mas não muda o fato das interpretações confirmarem e reforçarem o sentimento de simplicidade da vida daqueles dois homens, que mostram-se mais do que felizes e satisfeitos com o estilo de vida quase infantil que levam. No entanto, ainda não é possível tratar a dupla como os grandes chamarizes de “Jules et Jim”. Também não quer dizer que estão desconectados de todo o resto porque eles são um complemento importante da parte que prendeu minha atenção mais do que qualquer outra coisa: Catherine, a personagem de Jeanne Moreau.
Muito foi dito sobre ela e sua personagem. Como ela era atraente, mas de uma beleza diferente das estrelas perfeitas demais de Hollywood; um estilo natural mais próximo, talvez, de Ingrid Bergman e sua recusa de fazer as sobrancelhas e produzir-se para entrar nos moldes americanos de beleza. Ela é realmente uma mulher bonita, sim, mas é sua personagem que rouba a cena e incrementa a dinâmica antes existente apenas entre Jules e Jim a ponto de fazer tudo que veio antes soar faltante. Mesmo levando em conta a importância que já existia antes de Catherine entrar em jogo, é difícil negar que tudo fica mais interessante com sua presença intensificando os sentimentos de inconsequência juvenil ao mesmo tempo que causa certo estranhamento por ser uma variante radical daquilo que havia sido visto antes. Naturalmente, tudo que vai longe demais e se aproxima do fanatismo assusta o cidadão comum desacostumado com tudo aquilo, no caso de “Jules et Jim” encontrando-se preso e até enfeitiçado por aquele jeito peculiar de encarar a vida como um todo. Já não é apenas buscar prazer sem pensar nas mágoas do passado e nas possibilidades assustadoras do futuro, e sim todo um nível novo.
A personagem entra como um vírus naquela relação e infecta os dois homens com seu jeito individualista e explicitamente hedonista. Com certeza vai além de atrair dois homens ao mesmo tempo usando charme, pois eles acabam numa situação parecida com a inicial do espectador quando este tenta entender e se acostumar ao jeito impetuoso e direto ao ponto da garota. Mais tarde, a relação muda novamente e deixa de lado alguns aspectos bonitinhos e elegantes de toda aquela estranheza para um resto mais questionável, convida o público a pensar na situação com um olhar mais cético e julgador. Os dois homens relegam-se a papéis mais caracteristicamente comuns e deixam as idiossincrasias de Catherine dominarem. Estas são expostas e dissecadas, repetidas e exibidas numa nova luz até que a moça não seja tanto a garotinha que cativa por ser charmosinha, mas que captura o interesse por seus traços psicológicos quase doentios. Quase, pois egoísmo extremo ainda não virou doença.
As jóias da coroa de “Jules et Jim” são compostas pela magnífica trilha sonora que praticamente matam as palavras para descrevê-las. Como falar daquilo que encaixa tão perfeitamente? Chega a ser difícil pensar estritamente em termos de composição, separar-se da experiência e afirmar que, sim, esta canção é uma composição e tanto. Ela está ali, conectada à experiência como a faixa magnética unida ao celulóide conduzindo o espectador por aquela sucessão de aventuras joviais que começa um pouco solta demais e logo passa a tomar forma. Primeiro, conforme a amizade dos dois rapazes se concretiza numa rotina apaixonante, depois quando um ciclone em forma de mulher chega e joga tudo para o alto. “Jules et Jim” é um dos filmes mais famosos de François Truffaut e, felizmente, faz jus a sua fama sendo também uma ótima razão para gostar mais do cinema da França.