Noções de classe, finesse e elegância, por mais que muitos digam o contrário, não têm estritamente a ver com riqueza. Por um lado, existem pessoas cujos traços físicos não denotam nenhuma dessas três qualidades e que são bem ricas; ao mesmo tempo que outras com pouco dinheiro conseguem passar a idéia de classe sem esforço. Claro, não há como ser ingênuo e dizer que dinheiro não facilita as coisas, pois ele pode comprar roupas belas que por vezes são caras. Ademais, falo disso porque a idéia central de “My Fair Lady” é justamente trabalhar estas noções de finesse numa pessoa sem que ela necessariamente suba de classe social financeiramente. Curioso, para dizer pouco.
Através de um experimento curioso, Henry Higgins (Rex Harrison) busca usar todos os seus anos e anos de estudos sobre fonética e a voz humana para transformar Eliza Doolittle (Audrey Hepburn), uma garota pobre, em uma dama. Ele a encontra vendendo flores murchas e sujas nas ruas enlameadas de Londres e faz uma aposta com um amigo, o Coronel Pickering (Wilfrid Hyde-White): transformar a fala da garota a ponto de que ninguém reconheça suas origens pobres num grande baile por vir. Higgins mostra-se determinado a refazer a garota do zero, que, por sua vez, está mais do que contente de sair da sujeira para viver numa casa cheia de criados, chocolate e roupas limpas. Ela só não esperou que poderia ter algo para ensinar a Henry, não quando ela sempre foi uma pessoa deselegante, tonga e iletrada. Isso muda conforme ela mesma se livra destas características.
Antes mesmo de entrar a fundo nos temas da obra e, consequentemente, na discussão sobre as mencionadas noções de finesse, devo dizer que “My Fair Lady” não dá a mínima para isso em sua parte visual, não tenta fazer muito com pouco. E isso é ótimo, pois seja lá qual for a qualidade do material apresentado, ele está sempre bem ilustrado por um Design de Produção que faz tudo parecer bonito para além do valor estético. Bonito num sentido leviano seria até incoerente porque pessoas pobres e cenários deselegantes seriam apresentados como mais bonitos do que suas contrapartes na vida real; como uma roupa que era para ser velha, gasta e danificada mostrar-se arrumadinha demais. É um tipo de descaracterização, de certa forma, porém nada disso acontece aqui. As roupas realmente parecem aquelas que uma pessoa pobre usaria, o que indica atenção aos detalhes na construção de um elemento que compõe uma porcentagem ínfima da experiência, mas que faz a diferença mais adiante quando uma outra face do figurino e da produção dá as caras.
Fica mais fácil notar e lembrar de como acertam tão bem nessas partes quando mudam de cenário de algo comum e urbano para a parte mais sofisticada da sociedade. Quando os homens deixam de usar os blazers com cotoveleiras e blusinhas de lã, quando as mulheres trocam as roupas de sempre por algo mais chamativo e audacioso, é aí que “My Fair Lady” faz o espectador lembrar que já se dava atenção a detalhes do figurino desde muito antes. Mais do que isso, é quando o termo “produção hollywoodiana” dá as caras com força total. Orçamento é sempre bom, embora hoje em dia sirva mais para as produções enérgicas arranjarem mais formas de explodir as coisas e criar efeitos especiais. Em 1964, uma quantidade próxima ao orçamento de “Mad Max: Fury Road” — corrigindo para a inflação — foi usada para construir os sets mais magníficos e colocar dezenas de pessoas trajando roupas extravagantes juntas ali, combinando as cores que vestem com as cores do cenário e transformando toda essa soma de eventos em um tipo de organismo vivo ou um ecossistema que pulsa com energia em conjunto. Este definitivamente não é um show de um homem só, e sim de uma amálgama de indivíduos trabalhando juntos na frente e detrás das câmeras.
Mas seria injusto dizer que só por esses motivos ou que só nesses momentos “My Fair Lady” se exalta porque ele inteiro é esteticamente agradável e, além do mais, é bem dirigido de forma que se note valor em outros pontos. Assim como “Les Misérables“, que trata de pessoas pobres em grande parte do tempo sem parecer feio, esta obra também surpreendente através de composições agradáveis e dinâmicas por conta de todo o movimento coreografado e bem ensaiado. Independente do momento ou do contexto, as pessoas sempre parecem estar no lugar e hora certos, contribuindo para que cada imagem seja organizada, além de bela. E isso não se trata de simetria ou de um posicionamento rígido de atores em cena. George Cukor dispõe cada um dos elementos de forma que eles se destaquem sozinhos ou como um todo. Cada cenário é aproveitado ao máximo enquanto os personagens sobem e descem escadas, dançam, caminham saltitando e brincam com os objetos ao seu redor ao ritmo da trilha sonora.
Isso parece ser rotina do gênero Musical, no qual as pessoas frequentemente saem dançando e cantando por aí ao invés de algum tipo de diferencial notável. Vale dizer que nem sempre isso acontece, mesmo indo contra o que soa natural, assim como vários princípios supostamente óbvios da linguagem cinematográfica passam batidos por tantos diretores. Mas o que chama mesmo a atenção é ver que certos momentos notavelmente coreografados acontecem algumas vezes sem razão nenhuma aparente — o início de uma canção, no caso. Às vezes, parece que, por mero capricho do diretor, os personagens brincam em meio ao que seria uma situação completamente normal, como se soubessem que estão em um musical e o fizessem para complementar o constante clima brincalhão e leve que domina “My Fair Lady”. E, claro, nas horas em que os números musicais realmente começam, essas brincadeiras eventuais tornam-se regra e a personalidade da obra apresenta-se em sua plenitude.
Por um lado, há o mencionado estilo bem coreografado de organizar a ação, como um número que ilustra exacerbadamente a arte de várias pessoas de figurino combinando se movendo ao mesmo tempo, fazendo as mesmas coisas e cantando as mesmas palavras. Essa postura funciona especialmente bem em alguns momentos que buscam indicar como, apesar de se qualificar como finos, toda a classe alta é igual e sem personalidade no topo de seu pedestal. O outro tipo visto em “My Fair Lady” tem mais a ver com as palavras e o uso criativo delas em conjunto, algo que tem mais a ver com um dos temas principais da obra. Não há quase nada de dança e coreografia neste outro modelo que prefere abraçar movimentos mais sutis e parecidos com improviso, como brincar com o cenário e seus objetos. O destaque de verdade é como uma frase rima com a próxima ou complementa uma que veio antes, sempre dando continuidade à tendência do protagonista de ostentar seu talento com palavras, voz e entonações. Para ele, as canções são como brincadeiras, quase um jeito de tirar sarro do resto da humanidade que não sabe falar tão bem quanto ele. Num mesmo filme existe dois tipos de musicais, estilos diferentes de executar um mesmo gênero e de preencher quase 3 horas de filme e de injetar variedade nelas.
“My Fair Lady” faz valer todo o dinheiro investido em uma produção ambiciosíssima, que não esconde onde o dinheiro foi gasto. Mas não é só de ostentação, beleza e competência técnica de que o filme é feito. Há ainda uma ótima história por trás de tudo isso, completa com personagens carismáticos e uma discussão temática que evoca diretamente as qualidades essenciais do elenco. A questão de classe e de finesse, por exemplo, tem muito a ver com a forma como Henry Higgins enxerga a vida como um todo. Ele conhece como as pessoas funcionam a ponto de saber o que é necessário para manipular suas percepções e por isso decide enganar a todos mostrando que até a mais pobre e vulgar das garotas pode se passar por socialite. Ele sabe que dinheiro por si não transforma vulgaridade em classe. E é esse seu problema, exatamente, ver as pessoas como coisas. Para piorar, ele ser competente o assegura ainda mais de suas convicções bizarras. Eliza, por outro lado, não tem 1% do seu conhecimento, mas tem um pouco de sabedoria sobre as pessoas em sua forma mais crua, algo totalmente alienígena para um homem que sempre recorreu a si mesmo diante da decepção constante vinda de fora.
Com isso em mente, dá para ver onde as coisas vão dar. Ou não. “My Fair Lady” parece ser mais um exemplo de pessoas muito diferentes cujas qualidades se chocam violentamente ao mesmo tempo que se complementam. E, não vou negar, há um pouco disso aqui. A diferença é que a progressão não tem nada a ver com que se pode chamar de romance tradicional quando os dois elementos parecem ser carentes de qualquer tipo de química forçada pelo roteiro. Há apenas Audrey Hepburn e Rex Harrison contentes em serem o mais espontâneos e fiéis aos seus papéis quanto possível. As coisas são como são e não parecem estar cumprindo agenda de alguma forma. “My Fair Lady”, como um todo, pode não ser o melhor dos musicais, porém certamente merece atenção por ser um projeto tão ambicioso que tem uma identidade incomparável.