Quem nunca teve vontade de falar algumas verdades para sua família? Ao menos em um ponto da vida, esse desejo surge com uma força que nenhum outro prazer traria tanta satisfação quanto. Infelizmente, não é sempre que se pode abrir a boca para colocar para fora as coisas que se pensa. Muitas delas são pesadas e passageiras, sendo esquecidas com o tempo ou, no mínimo, amenizadas até que possam ser expressadas de outra forma. “Festen” nasce desta exata vontade, mas não vinda do diretor. Thomas Vinterberg escutou a história no rádio, que, por sua vez, foi contada por um paciente psiquiátrico e totalmente inventada. Verdade ou não, resta a felicidade que tal besteira fantasiosa tenha resultado em um filme tão bom.
É o aniversário de 60 anos de Helge (Henning Moritzen), o patriarca da família e residente de um casarão com dezenas de quartos e espaço externo de sobra para as mais variadas atividades. Sem dúvidas um ótimo lugar para reunir todos os parentes numa grande festa regada a várias rodadas de comida, muita bebida e discursos de todos os tipos. Em outras palavras, a oportunidade perfeita para compartilhar as mesmas histórias de sempre, exceto para Christian (Ulrich Thomsen), um dos filhos da família. Ele tem algumas acusações contra o pai para compartilhar e escolheu a ocasião mais peculiar para isso.
No geral, “Festen” parece muito uma peça de teatro, tanto que anos depois foi adaptado em uma. As interações e a ação do filme são quase totalmente feitas de diálogo entre as pessoas que estão na mansão e a partir das conversas é possível descobrir praticamente tudo que está acontecendo naquele lugar. Desde identidades de personagens até sua relação com outros e o papel que acabam ocupando quando os discursos começam a rolar. A primeira imagem mostra Ulrich Thomsen caminhando sob o sol forte por uma estrada até algum lugar. Logo, um carro passa e o motorista reconhece o caminhante como seu irmão, aproveitando para oferecer-lhe uma carona até a festa enquanto obriga a mulher e filhos a fazer o resto do trajeto a pé. Lá, o irmão motorista é surpreendido ao descobrir que seu nome não está na lista. Poucos minutos de filme já revelam que nada é exatamente certo nessa festa, mas que não haja engano: a idéia aqui não é criar um tipo de família unicamente louca. Assim como a maioria dos casos, existem elementos destoantes e excêntricos em um todo majoritariamente normal.
Assim, dá para dizer que a maioria dos participantes é irrelevante para o drama principal. Querendo ou não, são os indivíduos diferentes e alguns outros mais normais que se envolvem diretamente no conflito iniciado por Christian quando este decide denunciar seu próprio pai em sua festa de aniversário. Ele tem três outros irmãos: Michael, o filho mais novo e dono da personalidade mais desvairada, sempre pronto pra fazer alguma besteira quando começa a beber; Helene (Paprika Steen), a filha querida da família e a mais normal dos irmãos; e Linda, que cometeu suicídio não muito tempo antes. Quanto ao pai e a mãe deles, não há nada de mais sobre eles. Ambos são socialites felizes em poder vestir-se bem e receber um grande número de parentes para servir comida e bebida à vontade. “Festen” não tenta se apoiar demais nas características únicas de seus personagens para impressionar sua audiência, por mais que exista um filho que perde o controle quando bêbado e um suicídio na história recente. As viradas em direção ao absurdo, que consequentemente trazem a surpresa, surgem justamente quando o momento parece ser dos mais ordinários.
As palavras de Christian dão o que falar e deixam tanto a audiência como os convidados da festa sem saber como reagir. É aí que toda a apresentação prévia de eventos aparentemente inúteis, apenas relacionados à preparação dos convidados antes do evento, passa a fazer diferença. Uma briga entre marido e mulher ou uma conversa entre um convidado e uma das garçonetes ganham desenvolvimento mais além em momentos que realmente colocam os personagens sob pressão, em uma situação imprevisível. Características pessoais, personalidade e relação com outras pessoas são estabelecidos no começo e intensificados mais tarde. “Festen” parece um filme comum em vários sentidos, inclusive sua estética quase caseira, e seria exatamente isso se não fosse o roteiro orientando a atividade supostamente sem significado até um conflito que começa de forma inesperada e se escala de jeitos não tradicionais. Principalmente através da insistência de um lado em afirmar um ponto constantemente invalidado pelo outro.
Por outro lado, um elemento de bastidores é tanto a característica definitiva de “Festen” como sua maldição. Independentemente das intenções, inspirações e objetivos por trás do movimento Dogme 95, suas regras constituem a pior parte da experiência. Em poucas palavras, o movimento começou quando Lars von Trier e Thomas Vinterberg, cansados da superprodução e estilização de Hollywood, decidiram fazer cinema com o mínimo de recursos possível — sem sets, iluminação artificial, filtros etc. Adicionalmente, apenas câmeras de mão eram permitidas para realizar toda a fotografia. E é daqui que provém toda a identidade de filme amador, feito em casa. Sem ao menos um tripé para estabilizar a imagem, a audiência é apresentada a movimentos de câmera pouco suaves notados especialmente em close-ups, quando a tremedeira fica mais evidente. Objetivamente falando, não há nada de positivo nesta abordagem crua e de poucos recursos; nada de uma elegância artesanal ou uma qualidade inesperada. A única coisa realmente impressionante disso tudo é que o filme funciona a despeito de todas essas características, um mérito do diretor, do roteiro e do elenco em vez de característica resultante do formato peculiar,
É bem fácil imaginar “Festen” como uma armadilha para novos cineastas, os quais podem julgar a aparência pouco polida como um facilitador. Algo como: “se este filme feio e mal produzido foi aclamado e fez sucesso, então posso fazer também”. Mais ou menos o mesmo aconteceu com “Ladri di Biciclette“, que levou muitos a achar que poderiam trabalhar com não atores. A diferença reside no fato de que ambas as obras não são bem conceituadas exclusivamente por este elemento de improviso, por assim dizer, mas por uma criatividade dos cineastas em fazer o melhor a partir desta decisão. No caso do filme italiano, mais de 500 não atores fizeram testes até que um fosse escolhido, ao passo que no longa de Thomas Vinterberg um elenco encontra-se sintonizado com um roteiro muito bem escrito e estruturado para fazer a obra transcender seu formato infeliz. No fim das contas, cabe a cada pessoa tomar suas próprias decisões estéticas e fazer o melhor com elas. Ser parte do Dogme 95 não é exatamente uma qualidade aqui.