Há alguns anos é possível identificar exatamente quais os assuntos em alta das obras indicadas ao Oscar. Sim, a maioria delas ainda segue alguns formatos mais prováveis de caírem nas graças daacademia — como biografias, filmes históricos etc. Contudo, o que acontece hoje é um pouco diferente: para além do formato similar, o conteúdo passa a ser compartilhado também. Sendo assim, é interessante ver um filme como “The Help” ser indicado a vários prêmios sem que os temas de racismo e igualdade étnica estivessem na boca do povo como atualmente. De suas quatro indicações, pelo menos três delas eram merecidas, incluindo Melhor Filme. Esta é uma história que coloca peso em seus temas socialmente tocantes sem apelar para artifícios melodramáticos. E esse mérito é, principalmente, da história, de seus personagens e das pessoas que os interpretam.
Em 1963, os Estados Unidos são abalados pelo movimento movimento dos direitos civis em seu auge. Mas não tanto em Jackson, Mississipi, onde as coisas mudaram pouquíssimo. A vida dos negros continua sendo a vida dos negros e a vida dos brancos, a vida dos brancos; com claras divisões de direitos, regalias e privilégios que vão longe a ponto de definir onde um negro pode fazer suas necessidades. Então a jovem Skeeter Phelan (Emma Stone) chega na cidade sem conseguir encaixar-se direito na hierarquia social construída por gente como Hilly Holbrook (Bryce Dallas Howard), a suposta embaixadora dos bons cidadãos. Vendo como a realidade é desigual e injusta com pessoas que nem de longe merecem tal tratamento, Skeeter decide começar sua carreira jornalística dando voz a estas pessoas raramente ouvidas.
Discutir movimentos sociais pode ser como acender um fósforo numa sala cheia de gás, dependendo da pessoa com quem se fala. Existem aqueles que defendem a equidade entre grupos privilegiados e menosprezados por algum motivo, mas existem outros que lutam para virar o jogo e empoderar os até então desfavorecidos para que eles passem a ditar as regras, transformando o oprimido em opressor. Surge então um grande problema por existir essa diferença dentro de um movimento de causa similar e pessoas que não distinguem os radicais do resto: generalização de ambos os lados e desentendimentos desnecessários. O ponto é que acaba sendo fácil tomar um lado e pintar qualquer pessoa que não esteja junto como vilã, tratar um fenômeno complexo como um simples embate entre dois lados concorrentes. No entanto, não dá para dizer que não existe conflito e, curiosamente, é isso o que se vê em “The Help”: ele pode ser enxergado dessa forma sem necessariamente emburrecer as relações étnicas apresentadas.
De um jeito básico, é possível atribuir o sucesso de “The Help” ao modo como ele constrói e desenvolve os dois lados da moeda para que exista um desequilíbrio dinâmico. Se dá para dizer que existe um lado branco e outro negro aqui, cada um possui representantes nomináveis e, acima de tudo, memoráveis. Não se trata de ver um personagem negro e carismático, como Aibleen Clark (Viola Davis) e Minny Jackson (Octavia Spencer), sendo oprimido pelo povo em branco generalizado, como policiais sem nome abusando de sua autoridade. Os antagonistas possuem rosto e voz para declamar suas crenças distorcidas em alto e bom som, garantindo que sua imagem seja a de alguém que acredita que negros devem usar banheiros exclusivos para eles e que não são obrigados a dar uma explicação para isso. Ambos os lados são desenvolvidos para que as relações entre eles não sejam artificiais, impessoais ou até unilaterais demais. Existem vilões na história, gente influenciada pelos vilões e gente simplesmente passiva diante de tudo o que acontece: os primeiros são escritos para despertar o desprezo, os segundos para demonstrar a mente fraca do povo e os terceiros como indivíduos passíveis de mudança. Dizer que existe simplesmente gente branca não se aplica aqui.
No lado dos moralmente questionáveis de “The Help”, Bryce Dallas Howard comanda a comissão da boa vontade com discursos emperiquitados sobre o que é melhor para as pessoas, falando como se tivesse em mente os melhores interesses de todos — inclusive do povo negro. Em suma, ela é como todas as outras mulheres que a rodeiam: o estereótipo das donas de casa satisfeitas com limpar a casa, fazer a comida e esperar o homem chegar em um lar lustroso; fofoqueiras profissionais que aproveitam eventos sociais para ostentar sua superioridade e tentam esconder isso com o estoque aparentemente infinito de bolos e tortas que sempre levam de presente. Mas há algo de pior nela. Enquanto a maioria das pessoas dança conforme a música, é a personagem de Howard que faz questão de ditar as regras e às vezes até intimar as pessoas a cumprir sua agenda racialmente hostil sob ameaça de tornar-se malvista entre as mulheres da cidade. Há mais do que alguns motivos para torcer o nariz para ela. Aliás, chegam a sobrar.
Em contrapartida, o coração do filme está em personagens incríveis como Minny Jackson e Aibileen Clark, pessoas que nunca se fazem de coitadas ou se colocam numa posição de vítima porque não precisam disso. Fica claro em sua relação com as socialites brancas que sua realidade é um ciclo de engolir seco, tolerar montes de besteira e arrumar consolo na amizade de crianças que ainda não têm idade suficiente para abraçar a racista norma vigente. Ainda. Especialmente pelo esforço de Viola Davis, que já em “The Help” faz muito por merecer seu primeiro Oscar, é possível sentir com vivacidade o que uma mulher negra vivia durante os Anos 60 e descobrir que não é só uma questão de usar banheiros alternativos, mas de perceber que seu lugar na sociedade é o de alguém irrelevante, um sub-cidadão que é tolerado em vez de aceito. As dores de cabeça diárias ela aceita, mas nunca certas coisas terríveis que viveu e vive todos os dias.
Enquanto isso, Minny Jackson funciona como uma fonte de alívio cômico que reage diferentemente aos absurdos diários. Em vez de baixar a cabeça e aceitar a condição, ela tem um pouco mais de ousadia e menos medo de retrucar as rainhas auto-proclamadas quando as coisas chegam no limite. É difícil descrever sua influência na obra em geral. Sua função vai além de fazer piadinhas e aliviar o tom, mas não chega a ser proeminente como a da personagem de Viola Davis, que sem dúvida é o coração de “The Help”. O mais sensato é apontar que o roteiro faz muitíssimo bom proveito do talento de Octavia Spencer, usando-a para gerar vários momentos engraçados e aproveitando uma grande cena em especial a ponto de torná-la uma piada interna entre o próprio elenco de personagens. Definitivamente as gracinhas não são feitas para apenas a audiência rir. Elas funcionam dentro da própria narrativa.
Embora isto não queira dizer muita coisa, é curioso ver como a recepção the “The Help”, embora positiva, não foi nada impressionante. Claro, comparar uma impressão pessoal com um agregado de dezenas de opiniões de outros críticos não é evidência objetiva de que alguém está errado. No entanto, não há como não pensar em como seria a recepção caso “The Help” tivesse sido lançado depois da polêmica do #OscarsSoWhite. No mínimo, seria um interessante exercício de ver como a mentalidade geral é influenciada pelos que está em alta.