Tonya Harding (Margot Robbie) nunca teve uma vida fácil. Seu talento na patinação no gelo, esporte que pratica desde os três anos de idade, foi o jeito que achou de provar sua relevância e firmar seu lugar no mundo. Para Tonya, a patinação é tudo em sua vida; enquanto Tonya não é tudo para a patinação. Por mais que ela se esforce e demonstre competência, os juízes e ditos especialistas fazem um esforço para virar o rosto e agraciar outras patinadoras. Nada muito diferente do padrão que ela viveu desde pequena: uma mãe que apoiou sua vocação aos tapas e gritos e um marido que apenas contribuiu com a parte dos tapas e gritos. “I, Tonya” parece uma história de vida com uma cota respeitável de problemas e sofrimento ladrilhando a estrada da superação, talvez até com um quê de isca de Oscar. Só que não.
Ao lembrar de 2017 no cinema, devo dizer que a memória não é automaticamente boa como em outros anos. A temporada do Oscar, em especial, trouxe várias decepções e obras apenas decentes concorrendo a prêmios grandes. Não foi o filme sobre a vida de uma patinadora que me chamou a atenção entre tantos outros similares, ao menos lendo a premissa por cima. Confesso que não conhecia a figura de Tonya Harding ou toda a polêmica acerca de sua pessoa durante os Anos 90, então tive pouca razão para gostar deste longa e menos ainda por não ter visto nenhum trailer. No entanto, Margot Robbie foi indicada para Melhor Atriz e, finalmente, algum atrativo surgiu. Justamente por não ser um admirador ávido do trabalho da atriz, conferi “I, Tonya” para ver se realmente havia motivo para tal indicação. Talvez seria como “Jackie“, cuja premissa não me cativou nem um décimo do que encontrei eventualmente na sublime atuação de Natalie Portman.
Mas o motivo pelo qual gostei tanto de “I, Tonya” foi justamente o oposto. A história, a narrativa, o ritmo e o tom roubaram a cena enquanto Robbie mostrou-se melhor do que o esperado, ainda que não dê um passo certeiro em direção ao panteão das grandes atrizes da atualidade. Os maiores méritos estão muito mais a frente do que os talentos dramáticos da atriz principal, pois, afinal de contas, são eles que viram o gênero Biografia ao avesso e dão um tapa na cara de todos os filmes contentes em seguir o modelo popular da Academia. Pensando em possíveis problemas, não diria que estes surgem tanto na forma de retornos anti-climáticos ao padrão, embora eles existam. O longa peca mais pelo excesso ao sair fora da curva demais em alguns pontos sem apresentar uma explicação convincente.
Tudo está intimamente atrelado ao caráter descontraído da narrativa, que trata a vida da protagonista como uma série de desventuras, desencontros e desavenças ao invés de uma enorme tragédia feita de frustração e injustiça. Parece lógico abraçar uma representação dramática quando se fala de uma garotinha talentosa intimada agressivamente pela mãe a se dedicar a um esporte, que sai de uma relação estupidamente abusiva para entrar em outra. Ou ainda, poderiam tentar compensar o antagonismo direcionado à atleta resultante do envolvimento em um escândalo gigantesco — tirar o foco da fama negativa, em outras palavras. “I, Tonya” não faz nada disso e, ao mesmo tempo, não se distancia disso. A diferença está puramente na abordagem sensata da vida da patinadora, não menos cômica por isso.
“I, Tonya” anuncia nos créditos iniciais que é baseado em horas de entrevistas gravadas e não deixa essa informação ser minimamente gratuita. Súbitas mudanças no formato de tela para o quadradinho das televisões antigas indicam que as próprias entrevistas aparecem com um toque especial: todas são encenações apimentadas com a metalinguagem dos mockumentaries. O filme fala com a audiência diretamente e com si mesmo. Dois entrevistados dão depoimentos contraditórios, só que um é em resposta direta ao outro e nenhum deles está no mesmo ambiente. Quando Jeff Gilooly (Sebastian Stan), o marido de Tonya, diz nunca ter batido nela, entra imediatamente uma sequência dele distribuindo empurrões, tapas, socos e xingamentos de todos os tipos enquanto ela contraria dizendo que definitivamente apanhava dele. Edição e elenco trabalham admiravelmente nos saltos entre passado e futuro: enquanto um encaixa os momentos certos nas horas certas, o outro dedica-se a honrar o tom cômico na execução. O resultado? O uso de imagens supostamente documentais como uma fonte confiável de humor.
Existe o cômico sem o escracho, toda a situação sendo relatada de um jeito engraçado sem que a gravidade da agressão e do abuso sejam amenizados ou menosprezados. Não se brinca com violência doméstica ou sequer focam no assunto diretamente, pois ele é apenas uma parte do trajeto desgraçado de Tonya Harding. Mesmo nas cenas animadas, é possível criar empatia pela protagonista e entender sua angústia, que é trabalhada mais diretamente em outras cenas menos interessadas em causar risadas. As aparições da mãe da patinadora, apoiadas pela ótima Allison Janney, flertam com a comédia em declarações e atitudes absurdas, risíveis de tão improváveis, mas nunca escondem as palavras duras e afiadas que feririam qualquer pessoa. As coisas que a mãe de Tonya faz são difíceis de engolir com qualquer máscara.
Várias das reações dos personagens mostram que não é possível esconder ou maquiar alguns fatos. A vida de Tonya Harding não é apresentada de forma melodramática, mas não deixa de ter suas farpas pungentes. Não há piada que esconda as injustiças que a patinadora sofreu ao longo da vida, principalmente na mão de pessoas que esperavam dela um padrão predefinido rigidamente. Qualquer coisa fora disso, independentemente de técnica e qualidade, está automaticamente em desvantagem puramente por conta de mentes pequenas. Mas como disse, não tentam transformar a protagonista em algum tipo de vítima do destino. Sim, Margot Robbie faz a dor de sua personagem ser sentida como algo real mas também a traz junto de todos os problemas pessoais da protagonista. Toda frustração torna-se raiva e rebeldia, fúria não direcionada que, incrivelmente, molda a própria personalidade dela em algo imperfeito e difícil. Robbie faz seu trabalho sem deixar brechas para críticas, mas seu maior acerto é conseguir desvencilhar-se completamente do rótulo de loira bombástica. De todas as coisas que posso falar de Tonya Harding, delicada, atraente, sexualizada e feminina não estão no pacote. E não há nada de errado nisso, é apenas quem ela é.
Imagino que “I, Tonya” não pareça ter problemas graves, levando em conta todos os elogios. Isso que nem se falou da trilha sonora, que deixa qualquer um dos “Guardiões da Galáxia” e dos filmes de Quentin Tarantino para trás, e da direção muito convincente quando param as brigas para entrar no ringue. Entretanto, falta algo nesse conjunto de qualidades atraentes. Por um lado, pecam pelo excesso nas piscadinhas que dão para a audiência porque não há uma lógica consistente por trás das quebras de quarta parede; ora elas acontecem durante os relatos reencenados, que são claramente esquetes cômicos, ora durante as dramatizações propriamente ditas. Já o final do filme é incrivelmente morno; talvez a única ocasião em que deixam de lado a edição dinâmica e bem humorada pelo finalzinho padrão contando o que aconteceu com os envolvidos nos anos seguintes. Depois de uma história explosivamente cativante, finalizar com algo sem sal foi uma decepção e tanto.