É complicado saber o que acontece atualmente no Oriente Médio. Além de todas as questões sobre grupos terroristas e seus ataques no ocidente, que já despertam uma série de debates sobre fanatismo e preconceito contra gente que não tem nada a ver com isso, existe muita margem para explorar a cultura do país como um todo. Felizmente, o cinema abre as portas para um pouco mais de conhecimento. Assim como “Hotel Rwanda” ilumina um pouco a violência entre ruandeses e deixa no ar que existe muito mais para ser falado, “O Insulto” faz o mesmo ao abordar a relação entre palestinos e cristãos do Líbano. Dá para ter uma boa idéia do que acontece, ao passo que todo o plano de fundo envolvendo religião e política no país facilmente eclipsa o que é abordado neste filme.
No mínimo, “O Insulto” pode ser considerado bem sucedido por despertar esta vontade de ir além do que mostra. Só isso já faz a experiência valer a pena, pois dificilmente me sentiria espontaneamente empolgado para ler sobre o complexo histórico sociopolítico e religioso do Líbano. Deixando claro que não é por conteúdo incompleto que me sinto dessa forma, pois a intenção aqui não é ser informativo ou ser uma revisão histórica, e sim utilizar um pedaço da vida de dois indivíduos como representante de uma rede de conceitos muito mais complexa. Quanto a isso, não posso acusar a história de falhar nessa proposta, sem esquecer que a vontade de transformar o pequeno em algo maior, mais visível e mais intenso resulta em um toque surrealista anti-climático. A ambição de ser símbolo para algo mais complexo é o tiro no pé que o longa dá em si mesmo.
A premissa mostra perfeitamente o seguimento de um evento casual para algo estratosfericamente maior. Num dia de trabalho comum, Yasser Abdallah Salameh (Kamle El Basha) é atrapalhado pela calha irregular do morador de um prédio da região, Tony Hanna (Adel Karam). Quando tenta conversar com o homem, Salameh é maltratado repetidamente até que finalmente responde com um insulto. Hanna se ofende e exige um pedido de desculpas, mas a situação está praguejada demais por orgulho. Tentativas de resolver o problema falham porque, no fundo, nenhum dos dois está completamente disposto a fazer isso, o que resulta em maiores complicações e na explosão do evento na mídia.
Como se pode ver, uma intriga entre duas pessoas logo ganha proporções gigantescas por conta das decisões repetidamente burras dos personagens. Assim, uma das idéias centrais de “O Insulto” é mostrar que os efeitos de um evento pequeno não são desprezíveis porque ele envolve só duas pessoas. Por mais que muita gente ache que pode falar coisas pesadas só porque poucos estão ouvindo, o poder das palavras permanece o mesmo independentemente da escala do acontecimento. Esta é uma situação traiçoeira, de certa forma, pois dá às declarações e atos de um cidadão a mesma exposição dos comentários de uma celebridade. A pessoa, que achava que nunca se daria mal pelas coisas que fala, ganha seguidores e críticos, inclusive os fanáticos dispostos a fazer um esforço para mostrar de qual lado estão.
A importância de certas crenças em âmbito nacional e o histórico do país em geral são revelados por meio desta simples troca de farpas. Conhece-se o ódio profundo e supostamente embasado de um grupo religioso pelo outro. Muitos cristãos nunca tiveram problemas diretamente com palestinos — e vice versa — mas alimentam seu rancor com os eventos do passado, as batalhas de seus pais e as dificuldades enfrentadas por conhecidos. Isso não impede que a raiva seja viva a ponto de levar a pessoa a cometer atos moralmente questionáveis e insistir nisso, totalmente certa da legitimidade de seus atos e pouquíssimo disposta a repensá-los. Sobre este ponto, especialmente considerando o ponto de vista estereotípico de muitos no Ocidente, é curiosa a ousadia de “O Insulto” de representar exatamente o lado fanático do povo libanês. A determinação de um homem em arranjar jeitos e jeitos de mostrar que está certo e, no processo, colocar seu oponente em seu lugar; se possível, com ele recebendo uma punição adequada ao seu comportamento supostamente inadequado. Não importa que esposa, parentes, amigos e autoridades tentem fazer o indivíduo agir com parcimônia, ele está convencido demais para ouvir os outros.
Os dois personagens principais, ambos ofensor e ofendido numa situação que começa com um erro revidado com outro e outro erro, expressam esse ódio latente melhor do que qualquer tentativa do enredo de estabelecer impacto. Objetivamente, é possível estabelecer uma parcela de culpa maior ou menor para cada um de acordo com a gravidade dos atos. Os dois cometem erros, mas alguns destes deslizes são mais pesados que outros, o que complica consideravelmente a parcialidade da história perante seus participantes. Talvez seja algo pessoal avaliar o desequilíbrio moral de “O Insulto”, pois outro espectador pode considerar ambos igualmente culpados por carecerem do mínimo de humildade para engolir seco e enterrar o desentendimento. Se a idéia é mostrar erro nos dois lados, para mim faria mais sentido deixar uma situação ambígua, na qual é difícil apontar o dedo e julgar culpa. Do jeito que o circo se constrói, é fácil notar quando a história tenta manipular a empatia do espectador pelos personagens, quando um é pintado de forma inicialmente mais negativa e depois é agraciado com uma informação muito relacionável sobre sua vida.
Mas o maior problema relacionado a intenções óbvias não é esta questão de culpa maior ou menor, pois ela ainda rende uma diversidade nas atuações. O desequilíbrio possibilita que o talento de Adel Karam e Kamel El Basha seja apreciado através de atuações bem diferentes. Infelizmente, fica exageradamente claro que “O Insulto” tenta passar uma mensagem grande utilizando-se de um exemplo relativamente banal. A história faz isso explicitamente ao aumentar o impacto das ações individuais progressivamente até chegar num nível descontrolado, utilizando a escala objetiva como representante de importância real. Ou seja, é como se o espectador devesse se importar mais porque a briga passa a receber mais atenção pública. Sem especificar como “O Insulto” faz isso porque seria falar demais, devo dizer que me senti especialmente incomodado por como a situação se escala. É muito difícil não pensar que tudo tem uma cara cinematográfica demais, que todo o desenrolar da trama é o tipo de coisa que só acontece em filmes.
“O Insulto” é um filme competente, mas levando em conta todo o aplauso recebido, além de ser a primeira obra libanesa a ser indicada ao Oscar, está um pouco aquém da imagem que criaram. Mas crédito deve ir onde crédito é devido. Se eu me interesso na história social-religiosa do Líbano, um pouco que seja, é por conta do que vi aqui. Longe de perfeito, o conflito ainda pode se gabar pela força do elenco em mostrar a capacidade da índole humana de distorcer-se sob a ótica da religião e de política. De um lado, atuações fortes ilustram bem o fanatismo dos envolvidos; de outro, uma abordagem irrealista e de objetivos claros demais.