A premissa de “Get Out” é tudo menos convencional: Chris (Daniel Kaluuya) prepara-se para pegar o carro e visitar a família de sua namorada, Rose Armitage (Alisson Williams), pela primeira vez. Aparentemente, nada demais sobre o evento, exceto pelo fato de Chris ser negro. Toda a família de Rose é excessivamente branca, praticamente do tipo que criticaria a filha por envolver-se com tal etnia. Mas não há nada certo quanto ao racismo da família, só um pouco de receio e ansiedade sobre o que pode acontecer quando a hora chegar. Não surpreendentemente, a estadia de Chris mostra-se peculiar, no mínimo.
Por si, talvez “Get Out” pareça comum e completamente esperado em tempos de discussão sobre etnias e minorias. Poderia ser apenas mais uma história em que um evento comum ganha uma caracterização única por trazer a tona questões de raça, preconceito e tradição, como Chris visitar sua namorada e descobrir que existe todo um sub-texto hostil por trás das piadas, da hospitalidade e dos sorrisos. Só há um detalhe: este é um filme de Terror ou, pelo menos, um Suspense com toques de Terror. A história que parecia não trazer muita novidade passa a fazer parte de um formato que não parece imediatamente preocupado com o que a mídia está tagarelando sobre. Sim, os temas populares ainda estão ali. Não muito bem escondidos, mas exacerbados por um roteiro inteligente que busca transformar a discussão de sempre em uma forma de entretenimento. Por que não?
Tive uma reação adequadamente peculiar quando descobri que “Get Out”, um filme de terror sobre racismo, estava fazendo sucesso. Fiquei um bom tempo imaginando como diabos algo assim poderia funcionar sem que houvesse algum tipo de metáfora clássica — como a do monstro — e, enfim, não cheguei em nenhuma conclusão até finalmente ver o filme. Então fui surpreendido — o que o diretor e roteirista, Jordan Peele, provavelmente esperava atingir com seu roteiro. Espertinho sem cair na pretensão, criativo sem ir pra fora da caixa demais, o enredo é muito mais sofisticado do que a maioria dos filmes de suspense e terror por aí. Existem algumas coisas óbvias, porém essenciais, tal como a certeza de que as coisas dariam errado já no começo quando a namorada de Chris fala que não avisou os pais que ele é negro. Na sequência, outras cenas alimentam essa noção cada vez mais, mostrando que a idéia definitivamente não é fazer mistério sobre os problemas que estão para surgir. A sacada é descobrir como isso vai acontecer.
No entanto, não acho que esta é uma história que desafia o espectador a tentar descobrir seus segredos antes da hora. Inclusive, esta é uma prática aparentemente responsável por estragar “Get Out” para quem se aventurou a ficar adivinhando o que aconteceria. O roteiro é bom, mas não tem uma solução absurdamente inesperada para se dar ao luxo de provocar a audiência. O espectador possui tantas informações quanto o protagonista, descobrindo a verdade apenas quando o próprio o faz. As várias pistas dispersadas pela trama não me compeliram a tentar montar compulsivamente o quebra-cabeça e descobrir o que diabos estava acontecendo na casa dos Armitage. Assisti ao filme notando algo esquisito na fala ou no comportamento de um personagem sem pensar em muito além disso. O presente mostrava-se interessante o bastante para que pensar no futuro não fosse necessário.
Mas claro, é praticamente impossível abster-se completamente de pensar no que está acontecendo. Seja qual for a imagem que o filme apresenta ao espectador, ele vai lembrar do que veio antes e automaticamente criar algum tipo de relação lógica entre as partes. O mesmo acontece com “Get Out”. Não fui incisivo em minha tentativa de tentar desvendar o mistério, mas já havia reunido uma boa quantidade de evidências para que a revelação final não fosse uma surpresa explosiva nem algo previsível. Foi um meio termo mais que aceitável, pois cumpriu sua função na trama de explicar os diversos porquês prévios e constituir uma reviravolta que muda bastante o caráter da obra. É como num Terror Slasher padrão, fazendo uma comparação solta: as pessoas são mortas uma a uma até que sobram apenas uma ou duas que se vêem obrigadas a enfrentar o assassino. De uma forma um tanto menos direta, a história muda a abordagem quando abre as portas para um final mais explosivo do que o mistério de antes.
Mas os sucessos de “Get Out” não são limitados ao nível da surpresa no clímax. Tudo o que vem antes e depois é igualmente eficiente na criação de uma história que prende o espectador ao seu universo bizarro e familiar ao mesmo tempo. Por um lado, vários elementos do Terror criam um estilo similar ao que se vê em “Cabin in the Woods“, com um ar de sátira visto em personagens quase estereotípicos e em um ambiente que grita filme de terror. Não sendo estranho o bastante visitar um casarão de campo isolado de toda a vizinhança por alguns quilômetros, Chris ainda tem de lidar com a peculiar família de Rose: um pai que faz comentários desconfortáveis o tempo todo, um irmão que parece não bater bem e uma mãe especialista em hipnose. Algo soa errado enquanto as aparências sugerem situações completamente normais, as quais só seriam problemáticas de alguma forma caso a pessoa fosse um tanto paranóica.
A grande diferença é que Chris tem seus motivos para estar com um pé atrás. Todo mundo age como se um negro dentro de casa fosse algo muito surpreendente, sendo que os empregados da casa são negros e trabalham lá há anos, por exemplo. No geral, o elenco se sai muito bem na construção de um ambiente gradualmente inóspito sem apoiar-se nas típicas noções de hostilidade e racismo. Uma coisa é ser violento diretamente e partir para a agressão verbal e física, talvez até mesmo para a alfinetada passiva-agressiva; outra é estabelecer uma atmosfera pesada que diz alguma coisa muito suavemente, que pode ser sentida sem necessariamente poder ser atribuída a alguma coisa específica. Similarmente, o racismo não é a clássica segregação ou menosprezamento acompanhados de uma ideologia radical. Ainda que não entregue a maior surpresa de todos os tempos por meio de uma reviravolta super-inteligente, “Get Out” tem sucesso em criar um clima de estranheza em que a maioria dos personagens ali é racista de alguma forma, porém sem que seja possível acusá-los de algo mais que aparente ignorância antes.
Talvez “Get Out” tenha recebido uma onda de aplauso um pouco exagerada, o que deve ter influenciado a pré-concepção de muitos espectadores que entraram na sessão já buscando provar alguma coisa, desafiando o filme e tentando desvendar seus segredos antes da hora para mostrar que ele não é tudo isso. Não é como se isso fosse errado ou algo do tipo, mas acredito que nem o próprio filme tenta puxar o tapete do espectador de uma forma inesquecível ou aposta todas suas fichas nisso. Seu maior mérito é, de longe, conseguir encaixar o racismo e situações naturalmente cotidianas nos moldes do filme de terror com toques de sátira pontualmente bem utilizadas. Pode não ser uma maravilha, mas é entretenimento de ótimo gosto.