O que nos torna seres humanos completos? Seria possuir um corpo sem deficiência, livre de cegueira, surdez, paralisias físicas, mudez e transtornos graves? Talvez no senso comum, porém não deixa de ser um assunto passível de debate uma vez que campanhas de inclusão sempre existiram e mantêm-se fortes em suas propostas de proporcionar equidade entre pessoas. Se os detalhes frequentemente ignorados e até escondidos forem considerados, a frágil noção de completude logo se erode. “The Shape of Water” confronta noções de pertencimento, plenitude e normatividade tomando os tangentes caminhos da fantasia e, muitas vezes, falando o que quer sem o fazer diretamente.
Elisa Esposito (Sally Hawkins), uma mulher em seus 30 e tantos anos, trabalha como faxineira em uma instalação governamental, onde encontra desde o típico cientista de jaleco branco até o eventual general com cinco estrelas na farda. Vivendo de poucos amigos, ela alterna entre escutar os desabafos de Zelda (Octavia Spencer) no trabalho e compartilhar sua solidão com a de Giles (Richard Jenkins), seu vizinho melancólico. Nada realmente interessante acontece em suas vidas praguejadas pela mesmice, exceto pela dor de cabeça ocasional, o que muda com a chegada de um espécime anfíbio inteligente em um dos laboratórios.
Só há um porém: a protagonista é muda. Embora consiga comunicar-se usando gestos, ainda faz o tipo de poucas palavras. “The Shape of Water” toma esta característica como um estandarte de sua narrativa e a eleva a um patamar mais alto do que apenas uma caracterização criada para extrair uma interpretação peculiar de Sally Hawkins. Por vezes o longa funciona como um filme mudo: deixa a espetacular trilha sonora tomar uma posição mais ativa na narrativa e criar um grande e fluído balé de movimento e sentimento. Nesses momentos, a rotina simples de Elisa pulsa com vida e com aquilo que pode ser visto e sentido em detrimento do que pode ser falado. Logo o espectador se encontra numa excursão em direção a um território conhecido e misterioso ao mesmo tempo, um lugar que não esconde sua familiaridade e ainda incentiva a exploração. É como um amigo íntimo que abre seu coração e esconde seus demônios num canto escuro da mente ou um artista que revela seus truques, mas não todos. Por mais que se tente afirmar a existência de algo usando palavras, elas ainda são traduções que nunca englobam os significados em sua totalidade. Adequadamente, uma abordagem indireta mostra-se a correspondente ideal para um assunto parcialmente intangível.
E existe algo mais indefinível que a humanidade? Não a raça humana, mas o conjunto de qualidades, sentimentos, atitudes, crenças, biologia e ideais que tornam cada indivíduo uma parte dela. Elisa funciona como um exemplo interessante para desenvolver uma discussão sobre o assunto, pois trilha ao mesmo tempo as esferas da banalidade e da singularidade. Por um lado, ela tem uma relação peculiar com as pessoas: ela não pode falar, poucas pessoas entendem sua língua de gestos e pouquíssimas são suas amigas. Viver a vida como ela vive, meio solitária e meio deslocada, com certeza não parece algo normal em um primeiro momento. Todavia, a falta de comunicação tradicional e a introversão nunca impedem que se forme uma conexão com a personagem, a qual não deixa de frequentar o fast-food meia boca no final da tarde e ver alguma reprise na televisão até pegar no sono. Em muitos aspectos, ela é tão comum quanto o cidadão padrão. Talvez até mais, considerando a rotina rígida seguida. E no fundo, o que a diferencia mesmo das outras pessoas?
“The Shape of Water” resgata uma ambivalência sobre a qual li uma vez e lhe dá uma ilustração elucidativa que ainda não havia encontrado. Quando li pela que uma deformidade — como a carência ou alteração de um membro, órgão, sentido ou faculdade mental — pode ser encarada como uma limitação, a redução de uma capacidade ou a falta de algo possuído pela grande maioria, tive a confirmação de uma conclusão que sempre pareceu lógica. Se uma pessoa enxerga e a outra é cega, não precisa pensar muito para perceber que falta alguma coisa no segundo caso. No entanto, o mesmo livro trazia uma interpretação alternativa: a deformidade funcionando como um símbolo de singularidade, que separa seu detentor da banalidade e o eleva a um nível de individualidade especial, até transcendental em alguns casos. De certa forma, é o caso das crianças indianas com crânios disformes e expressões faciais destoantes do comum que são tratadas como divindades; embora este exemplo não tenha tido muito impacto por fundamentar-se em preceitos religiosos. Foi apenas com “The Shape of Water” que pude enxergar esta semântica nova numa forma ressonante e poderosa, que vai além das mensagens superficiais extraídas numa leitura rasa.
“Respeite e abrace as diferenças”; “No fundo, somos todos seres humanos de uma mesma espécie”; “Não existe raça e cor nos olhos de Deus”; “Ricos ou pobres, todos cagamos o mesmo tipo de merda”. Tudo isso expressa uma idéia geral e válida sobre os limites que a humanidade tende a estabelecer entre si para se sentir parte de um grupo específico e confirmar um sentimento de pertencimento. Infelizmente, a mensagem não é absorvida tão facilmente quanto é comunicada; felizmente, “The Shape of Water” não está para simplicidade ou para pregação de ideologia. Ele fornece material concreto para não me fazer parecer um louco delirando sobre humanidade e interpretações de uma deficiência. Há conteúdo de sobra para gerar idéias sobre o que a obra comunica para além do óbvio.
Seria deveras interessante se Elisa emanasse algum tipo de aura transcendental que deixa evidente seu avatar de individualidade e ostenta humanidade bruta, visível e inquestionável para todos aqueles sortudos o bastante para vislumbrá-la. Entretanto, a única coisa imediatamente notável para o espectador é o esforço de Sally Hawkins na criação de uma personagem introvertida, sim, mas que luta para ser objetiva e pontual quando tenta se comunicar. Muitas vezes o conteúdo da fala propriamente dito é tosco, como realizar um gesto para dizer “ovo”, ao passo que o diferencial se apresenta através do contexto e da forma. Ou seja, quando e como ela faz este simples ato, além de quais outros comportamentos e emoções são demonstrados em conjunto e qual a função de tal gesto na situação. Num mundo onde é difícil comunicar-se por natureza, Hawkins expõe quão importante falar claramente é para sua personagem e, melhor de tudo, como finalmente ser ouvida plenamente tem um impacto imensurável em sua vida. O roteiro de “The Shape of Water” faz sua parte ao introduzir personagens que fazem um esforço para conectar-se à protagonista, pois ambos Giles e Zelda demonstram carinho em momentos coloridos de humor tão bem entregue por Octavia Spencer e Richard Jenkins. Contudo, a comunicação tem falhas justamente porque todos são serem humanos de necessidades particulares. Eles dão atenção ao mesmo tempo que a desejam de volta; ambos fazem o esforço de aprender a língua dos sinais, porém também querem falar de suas vidas e aproveitar a posição de ouvinte da personagem.
Então entra o ponto mais peculiar da trama, o grande símbolo da fantasia e possivelmente o maior chamativo de “The Shape of Water”: um humanóide anfíbio. Ignorando similaridades ao Abe Sapien de “Hellboy” — que é interpretado pelo mesmo ator — a criatura aqui simboliza toda a humanidade que todo homem deveria ter. Como pode uma criatura tocar Elisa mais profundamente que qualquer outro humano? Ou ele faz algo muito certo, ou o resto do mundo faz tudo errado. Com ele, as questões de rotulagem e segregação ficam mais vivas e claras, especialmente pela forma tão transparente e sincera como ele trata a protagonista. Ademais, há a parte do romance ainda, que é muito melhor manuseada do que eu esperava por muitas vezes limitar-se ao básico para chegar onde quer. Assim como é natural para um animal agir instintivamente, o anfíbio demonstra seus sentimentos e pensamentos sem o filtro das convenções sociais e vai direto ao ponto, nunca exigindo qualquer tipo de adequação da parte de Elisa. As coisas simplesmente entre eles; e não dá para atribuir simplesmente ao popular conceito de química de casal.
Infelizmente, ainda existem alguns momentos que esquecem da qualidade sutil de uma comunicação econômica e enfeitam o envolvimento dos dois artificialmente, de um jeito tosco até para padrões humanos que não alcança nada mais do que o ridículo. Por sorte, estes momentos são extremamente raros e nem chegam de perto de estragar a conquista geral de “The Shape of Water” de humanizar o inumano, expor a sujeira do humano e colocar aquele que era considerado deficiente sob uma nova perspectiva. Engraçado, profundo e extremamente debatível, este é definitivamente um filme digno de lembrança da carreira de Guillermo Del Toro.