Chega a ser relativamente padrão lembrar de “Ladrões de Bicicletas” como aquele filme italiano que usou não-atores no elenco a fim de exacerbar a realidade dura de sua história. Fiz a exata comparação recentemente e provavelmente farei muitas outras vezes. Até considerei usar não atores quando estava nos estágios muito iniciais de pensar em gravar um curta-metragem. Se funcionou uma vez, por que não comigo também? Quem dera fosse uma tarefa resumida a uma decisão pontual; recrutar gente que nunca atuou e esperar que eles ajam naturalmente. Meu ponto é: o impacto deste filme neorrealista vai muito além de uma característica frequentemente mencionada. Ele é amplamente lembrado como um dos melhores filmes italianos de todos os tempos e é uma referência que extrapola fronteiras até hoje, quase 70 anos depois de seu lançamento.
Um amontoado de homens se aglomera em frente a escada de um prédio. Todos aguardam alguém aparecer para anunciar as vagas de trabalho disponíveis. A maioria deles irá como veio — sem um emprego — e, mesmo assim, eles conservam esperança de que uma vaga será deles. Antonio Ricci (Lamberto Maggiorani) consegue uma delas, finalmente podendo sustentar sua família adequadamente. Só há um problema: logo no primeiro dia de trabalho, Antonio tem sua bicicleta roubada. Sem ela, sua nova oportunidade terá vida curta.
Especialmente pelas tendências do Oscar, filmes biográficos ou baseados em fatos são uma constante. Suas histórias podem realmente ser fiéis ao que aconteceu ou não, mas o simples fato de envolver alguma figura popular ou eventos-chave às vezes já é o bastante. O problema costuma surgir quando se fala numa abordagem caracterizada pelo realismo, algo bem diferente e significativamente mais verdadeiro que os supostos fatos reais. Aqueles que buscam escapismo ou diversão descompromissada esquivam-se dessa proposta por conta de considerá-la desinteressante ou até ruim. Mas ser um filme de fantasia ou de ficção não tem absolutamente nada a ver com qualidade. É fácil perder a conta de quantas óperas espaciais de baixo orçamento foram feitas logo depois do sucesso esmagador de “Star Wars” em 1977. Ou ainda dos filmes de ação que acham que testosterona e um protagonista invencível já são o bastante. “Ladrões de Bicicletas” apresenta um forte argumento a favor do uso do realismo no cinema. Os obstáculos mais duros da vida são utilizados a favor da narrativa, resultando em algo certamente mais potente que as obras que ostentam apenas a fantasia como qualidade.
Dizem que a realidade é chata e por isso não deve ser matéria prima para o cinema, mas a verdade é que ela é difícil. Muitas pessoas não querem reencontrar o sofrimento de suas vidas numa tela de televisão ou de cinema. Muitas evitam serem relembradas de como o desemprego pode ser devastador e fazer uma família ir da fartura à falência. Sendo razoável, é um posicionamento válido. Entretanto, estes mesmos eventos árduos podem ter ótimas histórias para contar. Abordá-los sem romantizar ou dramatizar pode ser mais difícil de engolir para as pessoas citadas anteriormente, mas em “Ladrões de Bicicletas” isto funciona a favor da construção de mundo e do protagonista por conta de tudo estar dominado por uma realidade: a pobreza. A Itália está numa situação distante de luxos e comodidade. Pessoas se atropelarem para conseguir um emprego é apenas a ponta do iceberg; outros mentem para roubar vagas e roubam para ganhar dinheiro em cima da dificuldade alheia.
O ambiente inóspito determina o caráter de seu povo e leva alguns a cometer atos que prejudicam os outros. Sem uma bicicleta, Antonio ficará sem trabalho e seu filho, sem ter o que comer. É uma questão relativamente simples de precisar de um instrumento de trabalho para poder trabalhar, como um motorista de táxi e seu carro. Sem um, o outro não funciona. Pois é neste ponto que o realismo mostra uma presença forte. Por exemplo, em um filme como “Taken” surge um contato fornecendo informações para o protagonista encontrar sua filha quase imediatamente depois que ela é sequestrada. “Ladrões de Bicicletas”, por outro lado, tem soluções mais simples. Antonio Ricci também busca a ajuda de um colega para achar sua bicicleta roubada, mas este último tem apenas uma idéia bem vaga de onde procurar. Na prática, a solução encontrada é mais próxima do óbvio do que pode-se esperar.
Depois de passar raiva e um outro amontoado de emoções intensas, Antonio vai procurar sua bicicleta nas ruas. Sem solução milagrosa. Sem atalho. Sem uma grande reviravolta. Apenas a decisão mais básica de todas: sair andando e ver se recupera a sorte. Há uma grande feira em que vendem peças de todos os tipos; por que não procurar lá? “Ladrões de Bicicletas” evita dar aos seus protagonistas as ferramentas mágicas do roteiro e, assim, os deixa desamparados, praticamente largados ao próprio destino. Se a coincidência chega a dar o ar da graça, ela o faz apenas por um propósito bem pontual, nunca para resolver as coisas com a mágica do cinema que preza por finais felizes.
Mas nada disso fala por si. Eventos simples, particularmente, precisam de significado para não serem confundidos ou subestimados. Uma refeição, por exemplo, pode não ser nada mais que isso em muitos casos. Como o espectador faz isso com certa frequência em seu próprio dia a dia, é fácil imaginar como é possível passar batido. Afinal de contas, não dá para assumir que todos os eventos de um filme são relevantes por eles estarem lá, em primeiro lugar; muito menos que todos serão banais. Este segundo caso, por exemplo, pode ser uma expectativa associada a uma obra como “Ladrões de Bicicletas” por conta de sua abordagem peculiar. Para evitar que tal noção se concretize, elenco e roteiro trabalham juntos para determinar o valor de cada circunstância e demonstrar seu impacto. É por conta do exímio trabalho de direção realizado por Vittorio De Sica com seus atores — pessoas normais, na verdade — que é possível perceber a alegria de momentos brevemente agradáveis ou a decepção profunda de um pai preocupado com sua falta de sorte e incompetência recorrente em recuperar o que é seu.
Não é uma proposta idiota ou entediante como pode parecer. As coisas são como são por um propósito narrativo bem claro. Se Vittorio De Sica escolhe atores não-profissionais para seus papéis, é porque aqueles que selecionou contribuiriam para seu filme de alguma forma, porque ele saberia como extrair isso deles. É diferente de dizer que não-atores sempre farão um bom trabalho e trarão a fidelidade que se espera deles. Igualmente, uma entonação realista garante tanto sucesso quanto uma fictícia ou qualquer outra: nenhum. O sucesso é determinado pela competências dos envolvidos na execução da abordagem, não pela simples escolha dela. “Ladrões de Bicicletas” funciona porque o roteiro utiliza as partes sórdidas da vida comum de forma inteligente, os ingredientes já conhecidos combinados em uma obra que soa familiar e intrigante ao mesmo tempo.