Às vezes o contexto histórico faz toda a diferença. Todos os filmes, de certa forma, refletem algum aspecto da sociedade de sua época, em maior ou menor grau. Alguns destes são mais dependentes de um conhecimento sobre o que acontecia na época de sua produção, especialmente alguns clássicos que acabaram entrando para a história justamente por sua importância histórico-cultural. Famosa por ser a primeira produção alemã depois da Segunda Guerra, “Os Assassinos Estão Entre Nós” deu o pontapé inicial na ressurreição do Cinema Alemão, tendo aspectos fundamentalmente sociais como temas centrais. O país passou por uma das mudanças mais drásticas de sua história e abalou o mundo no processo. Depois de tudo, devastação para todos os lados e sentimentos de derrota, humilhação, frustração e descrença diante das escolhas tomadas. Tudo isso faz do pós-guerra um período com seu próprio valor.
Berlin está em ruínas. Tijolos e poeira dão as boas vindas à Susanne Wallner (Hildegard Knef) quando esta chega na cidade depois de retornar de um campo de concentração. O prédio onde morava está um trapo, mas ainda de pé. Chegando lá, ela encontra algumas figuras conhecidas e outras nem tanto. Um homem tem morado em seu apartamento enquanto esteve ausente: Hans Mertens (Willhelm Borchert), um doutor profundamente traumatizado pela guerra. Quando percebe que ele não tem para onde ir, ela decide dividir o apartamento e dar um novo começo à sua vida.
Não há como olhar para as primeiras cenas cenas de “Os Assassinos Estão Entre Nós” e não se impressionar. Está tudo destruído. Na esquina onde antes havia uma padaria e uma relojoaria, há apenas montanhas de escombros que tornam impossível reconhecer o que jazia ali. As pessoas seguem com suas vidas na medida do possível entre construções devastadas, muitas tentando não lembrar que o cadáver do irmão de algum conhecido pode estar debaixo das ruínas. Tamanha destruição não foi exatamente uma novidade para mim. Já havia visto fotos e representações na forma de jogos ou outros filmes previamente, mas nenhuma destas havia sido tão forte em sua representação da destruição absoluta da Alemanha. Ser o primeiro filme alemão depois da guerra não é um título vazio. Com ele, foi inaugurado o um movimento cinematográfico centrado na realidade imediata ao fim dos conflitos, o “Trümmerfilm” — “Filme de Destroços” na tradução literal. Mais do que isso, é um banho de água fria na forma da realidade sem fabricações e perfumarias. A destruição do país é real e palpável. Ela torna o sufoco dos personagens um elemento narrativo poderosíssimo ao expô-lo sem precisar fazer ninguém falar sobre suas dificuldades.
Um acerto da narrativa encontra-se justamente neste silêncio. Inicialmente, Susanne traz apenas um comentário breve sobre a estadia no campo de concentração, enquanto Hans comunica-se estritamente pelo seu comportamento errante. Há algo de errado com aquelas pessoas, as quais sofreram coisas terríveis para estarem daquele jeito. Todavia, não se fala nisso. Mal tocam nesse sofrimento, como se quisessem evitar mexer numa ferida desnecessariamente. Wolfgang Staudte, diretor e roteirista, faz isso valer e não trata o espectador como um motivo para colocar seus personagens num frenesi de exposição gratuita. “Os Assassinos Estão Entre Nós” tem um foco bem claro: o que veio depois da tormenta. Não é uma história sobre as dificuldades de uma mulher judia enviada a um campo de concentração ou de um soldado traumatizado com os horrores cometidos pela sua própria nação. Ela envolve isso até certo ponto, mas este envolvimento é limitado e pontual, abordado estritamente de acordo com sua relevância narrativa.
Os visuais passam uma mensagem clara sobre a situação enfrentada. De planos gerais capturando o horizonte de construções em pedaços até planos fechados aproveitando a intimidade dos escombros, o agora está presente demais para perder-se no passado. Isso fica especialmente claro pela competência de Staudte na encenação de seu espetáculo da decadência. O diretor sabe onde posicionar sua câmera a fim de extrair o máximo dos ambientes. Contrastes fortíssimos dominam “Os Assassinos Estão Entre Nós”. Por um lado, não é exatamente normal ver crianças correndo felizes por lugares cercados de morte e perigo; jovialidade e ingenuidade cruzando sem saber ou se importar com o que aconteceu ali. E como se não bastasse, essa e outras imagens são incrementadas por uma estética típica do Noir para engrandecer o que já tinha poder naturalmente. Ou seja, outro tipo de contraste entra em cena para enriquecer os visuais com sombras infestando os cenários caoticamente, mas sem perder eficiência. Os tons escuros estão ali como convidados indesejados pelos personagens, símbolos da falta de controle das pessoas sobre suas vidas. O jogo de claros e escuros é intencional e eficiente, produto de uma direção que sabe manipular os visuais para dar significado à estética.
Falar da história é repetir o que falei até agora, em parte. Os visuais marcantes e a atmosfera carregada com a carga emocional de esperanças estilhaçadas são partes essenciais da narrativa visual. Em contrapartida, não se trata apenas disso. O enredo e os personagens são aspectos importantíssimos a serem considerados quando se fala em história. No geral, ela se trata de três personagens: Susanne, Hans e Ferdinand Brückner (Arno Paulsen) — todos muitíssimo bem interpretados. Os dois primeiros, em especial, trabalham em consonância com a proposta principal de “Os Assassinos Estão Entre Nós”, incorporando o sofrimento e tornando-o o visível muitas vezes sem verbalizar nada. Por meio das interpretações, muito se absorve com sutileza, o que não pede ser dito do enredo e como ele usa os personagens. Novamente considerando contexto histórico, dá para entender algumas das decisões infelizes tomadas. Ser ousado demais poderia passar a mensagem errada para uma população em busca de novos começos, esperança e motivação para seguir em frente, então preferiram tomar o caminho seguro e ser moralistas logo no clímax. É compreensível, mas não tenho certeza se a decisão tomada era a única alternativa e, de qualquer forma, prejudica a obra. Infelizmente, ela não está sozinha, pois vários outros pontos mal executados ou pouquíssimo sutis atrapalham ainda mais. Um romance, por exemplo, é completamente desnecessário e, ainda por cima, não pode se gabar de ser bem manuseado a fim de amenizar essa qualidade negativa. No final das contas, o tratamento de alguns assuntos é artificial e deixa explícito demais o que pretendia-se com eles.
“Os Assassinos Estão Entre Nós” é uma experiência impactante e intensa, cujos prós vão muito além das características típicas de um filme tradicional. Assim como vários trabalhos do Neo-Realismo Italiano possuem doses cavalares de realismo, transmitidas através da exploração de assuntos cotidianos e do uso de elementos reais nas produções, este Trümmerfilm não poupa a audiência do sofrimento enfrentado pelo cidadão comum após os tempos de guerra. Depois que se esgotam o heroísmo, o patriotismo e o idealismo, resta apenas aceitar as coisas como elas são, sem mentiras ou maquinações para maquiar verdades desagradáveis.