A franqueza pode render resultados incríveis. Há quem diga que cinema é meramente uma forma de escapismo, entretenimento de caráter fantástico para sair da banalidade do dia-a-dia. Já cheguei a ouvir que a realidade é real demais para ser experimentada de novo no cinema. Respeito a posição, embora não concorde. A sétima arte é até mais real que a realidade quando quer, pois ressalta as melhores ou as piores partes do ser humano e as expõe, tornando ainda mais doloroso para aqueles que fogem de encarar certas verdades. “Marty” toma como base um fenômeno completamente comum, presente cotidiano das pessoas ao menos uma vez. Acima de tudo, reconta um pedaço da vida de forma honesta, sem nunca ficar abaixo do agradável no processo.
O irmão mais novo de Marty (Ernest Borgnine) acabou de casar. A comunidade inteira já está sabendo e conversam com ele sobre o assunto quando o encontram em seu trabalho no açougue. Aos comentários superficiais, ele apenas responde que foi um evento legal, mas não suporta quando falam sobre ele arranjar uma mulher para casar. Aos 36 anos e com tentativas falhas demais debaixo do braço, ele já nem cria mais expectativas sobre o assunto. Uma mãe preocupada com ser abandonada e amigos acostumados com a vida solteira tornam ainda mais difícil conseguir algo, mas o destino parece sorrir para Marty quando uma garota desiludida surge em sua vida.
Então está aí. Solidão, expectativas, desilusão, casamento. Elementos comuns quando se fala em romance e material frequente de comédias românticas sobre gente de meia idade tentando a sorte no amor. “O Virgem de Quarenta Anos”, os três filmes de “Bridget Jones”, “Shirley Valentine”… São vários os trabalhos que abordam o assunto, mas poucos o fazem de um jeito tão humano quanto “Marty”, adaptação cinematográfica de um roteiro para televisão muitíssimo bem recebido. O estrondoso sucesso da versão original foi um dos grandes passos da conquista da televisão por um lugar na casa das famílias, ainda numa época em que não era comum ter um televisor dentro de casa. O cinema, lutando para não perder espaço para o aparelho e seu novo entretenimento, não demorou para adaptar um dos maiores sucessos de seu concorrente numa versão estendida, talvez tentando mostrar que seus produtos são mais completos e profundos. Eventualmente, o longa foi premiado no Oscar com 4 estatuetas, solidificando sua posição como um produto de qualidade reconhecida. Todavia, não diria que as vitórias existem por um motivo estritamente mercadológico. Seria conveniente demais esta ser uma das duas únicas obras a vencer o Oscar de Melhor Filme e a Palma de Ouro em Cannes; além de injusto com Ernest Borgnine, que merece todo o aplauso por incorporar as ansiedades e angústias de um cidadão comum.
Não me surpreenderia se descobrisse que vários roteiristas reforçam suas histórias com exageros para deixá-las mais cinematográficas, interessantes, extraordinárias, incomuns e outros adjetivos que as separem da normalidade. Não é à toa que quando algo incrível acontece na vida de alguém, é provável que se fale que é “coisa de filme”. O romance que começa sob circunstâncias improváveis – como um assalto a banco ou um acidente de carro – é um clássico exemplo disso. “Marty” deixa essa visão de lado para aproximar-se do lado mais banal da vida. O protagonista é o açougueiro simpático conhecido no bairro todo, o queridinho das velhinhas e ouvinte de suas inesgotáveis fofocas. Seus interesses também são simples: ir ao bar e beber umas cervejas, acompanhar o jogo na televisão e ajudar sua mãe em casa. Nada de mais sobre isso, porém é justamente esse o segredo do filme. Ele não tem pretensões de ser gigantesco ou único, está contente com seu escopo e reflete este sentimento com uma história de qualidades simples. Eficiência não é definida por ambição, é vista na execução.
Francamente, devo dizer que tive dificuldade para imaginar Borgnine em outro papel além do caubói criminoso de “The Wild Bunch“. No famoso faroeste de Sam Peckinpah, ele não tem uma presença grande como a de Pike ou relevante para o enredo como Angel, mas estava ali presente como um dos homens que melhor representavam o sentimento de camaradagem entre aqueles bandidos. Definitivamente foi um rosto lembrado na posterioridade. A competência de Ernest Borgnine como ator ficou clara, mas ainda era difícil imaginá-lo em um papel dramático, que captura a essência do ser humano nos traços mais sutis e nas características cotidianas. Bem, fui surpreendido. As atuações compõem a parte mais forte de “Marty”, uma história direta ao ponto sobre um assunto simples. São os personagens e os atores interpretando-os que tornam o banal em algo interessante.
No mínimo, acertam em um aspecto: Ernest Borgnine tem o rosto do sujeito genérico. Colocar alguém como Montgomery Clift ou Cary Grant seria contra-intuitivo pelo papel exigir alguém que não tenha uma feição singular ou chamativa. Até mesmo o faroeste de Peckinpah usa essa característica, já que bandidos do Velho Oeste possuem um ar de proletariado sobre si. O interesse amoroso, por sua vez, não poderia ser diferente. Colocar alguém muito atraente, uma Grace Kelly, cairia no clichê de recompensar o vira-lata depois de um trajeto árduo e cheio de sofrimento. Beleza é questão de gosto, obviamente, mas não é só isso que define o sucesso da escolha de elenco. O rosto de Betsy Blair, a caracterização de sua personagem e sua interpretação todos fazem a diferença na construção de uma personalidade única, feita com cuidado para que não exista algo além de uma relação orgânica com Marty.
Não tenho dúvidas sobre a eficiência da dupla na construção de um relacionamento convincente, mas me encontro numa falta de palavras para qualificar este mérito. Os termos comuns – sublime, espetacular, incrível, surpreendente – não soam bem. Eles descrevem como eu me sinto em relação ao que vejo, porém vão contra a idéia central dos papéis. No fim das contas, a palavra mais aplicável é verdadeiro. Não há nada melhor para descrever as performances da dupla principal. Marty é um homem triste, nocauteado por exaustão depois de tantas tentativas no amor; sente que não pertence ao mundo dos outros homens, garanhões por natureza, e prefere não tocar nos assuntos do coração; finalmente, mal sabe esconder seu sorriso bobo diante da possibilidade de sucesso. Clara, a garota que o cativa, quer se apaixonar, mas não se força a nada, conhece bem seu coração para evitar situações que vão ferí-la. Ele é um homem de profissão modesta e família italiana; ela é a moça humilde amada pelos pais, que só querem vê-la feliz. Tudo funciona porque, no fim das contas, acredito nestas características e na relação das pessoas por trás delas.
Se fosse apontar um aspecto negativo ou, no mínimo, menos agradável, diria que vários artifícios do roteiro são pouco sutis a respeito sua função dentro da história. A subtrama da mãe temer que o filho vá abandoná-la, por exemplo, até passa como alívio cômico por se desenrolar com certo imediatismo. Outras revelam-se menos elegantes numa segunda análise, como os obstáculos no caminho de Marty enquanto ele está conhecendo a garota. Quanto ao que realmente importa, “Marty” faz bonito e não abre espaço para segundas impressões. Não há dúvida sobre a naturalidade de Ernest Borgnine e Betsy Blair. É uma história de homem e mulher se apaixonando na qual o homem não é nada mais que isso, a mulher age como uma e os dois se apaixonam verdadeiramente.