Muito antes do popular “The Wolf of Wall Street” de Martin Scorsese, o mercado mais falado do mundo já havia sido explorado sob outra perspectiva. Não tão preocupada com a glória e os frutos de uma ambição colossal, muito menos com extrair de tudo isso uma história cômica. Ainda em 1987, Oliver Stone trouxe à tona as diversas faces do sonho americano com “Wall Street”, elucidando as vulnerabilidades delas com olhar clínico e cuidado notável com os personagens que representam essas facetas. O jovem e o velho, o rico e o pobre, o sucesso e o fracasso. Há um pouco de tudo nos escritórios infernais de Nova York. Gente de todos os tipos vai e vem, mas o sonho de conquistar um pedaço do mundo permanece o mesmo.
Bud Fox (Charlie Sheen) trabalha como corretor num escritório em Wall Street. Sua função é simples: receber informação e tentar vender ações por telefone aos seus clientes. Não há nada de errado com isso, exceto pelo fato das informações serem pobres e os clientes, gente pequena. Fox sonha em partir para os peixes grandes e andar com eles, só precisando de uma chance para mostrar seu valor e chegar lá. A oportunidade parece bater à porta quando Gordon Gekko (Michael Douglas), um dos gigantes de Wall Street, finalmente atende o rapaz. Mas será frutífero o destino de um caminho pavimentado com ganância?
Há umas semanas, assisti a um vídeo falando sobre a diferença entre o humor americano e o britânico. Entre as pessoas que estavam nele, Ricky Gervais comenta que a mentalidade do povo e sua cultura influenciam diretamente no que era considerado engraçado, mais especificamente porque os americanos são mais otimistas. Eles acreditam que podem se tornar o próximo presidente, diferente dos britânicos e suas crenças mais fatalistas. Se a análise sociológica está certa, não vem ao caso. Porém não foi a primeira vez que escutei alguém falar sobre esta vontade de ser um gigante sobre a terra e, no mínimo, explicitar intenções de chegar lá. Parece algo da natureza dos americanos, uma programação independente do ramo de trabalho. Alguns dos exemplos mais clássicos são explorados em “Wall Street”, especialmente o de terno fino e carteira farta.
“Wall Street” inicia onde muitos começam: de baixo. Bud Fox está cheio de vontades, mas vê poucas oportunidades para concretizar seus sonhos da forma como fantasia. Ele veste seu terninho barato todos os dias e arruma o cabelo para ser notado na multidão sem saber que está se misturando ainda mais. Como um passarinho aflito e quase pronto para sair do ninho, Bud ainda precisa se virar com a ajuda de seu pai, líder do sindicato de trabalhadores de uma companhia aérea. Fox já tem seu emprego e apartamento, porém vez ou outra precisa de um empurrãozinho para não se embolar em dívidas. Isto acaba quando outro jogador chega e faz o jovem rapaz ver a vida como um jogo do dinheiro, a única moeda possível para conquistar algo na vida. É uma linha de pensamento similar ao resumo de Tony Montana sobre a América em “Scarface“: primeiro vem o dinheiro, depois o poder e então as mulheres.
Três grandes jogadores. Três representantes de uma mesma idéia. Três resultados diferentes. Ainda que não esteja entre os roteiros mais sutis, a idéia central de reunir diferentes produtos do sonho americano numa mesma história não depende desta qualidade para funcionar. A intenção é realmente evidenciar os limites já bem definidos entre um homem que encontra no trabalho a dignidade que o leva para frente e sempre levou, e outro que encontra no dinheiro uma boa razão para meter a mão no lixo. Um trabalhou a vida toda duramente e deseja permanecer íntegro, viver com menos antes de trair a si próprio; o outro já pensa que as regras do jogo são aquelas ditadas pelo indivíduo, cada um lutando em prol das suas com unhas e dentes. Parecem muito diferentes, mas eles estão mais próximos que parece. A origem é a mesma. Ambos partiram do mesmo princípio, da mesma interpretação de valores e do otimismo a respeito de conquistar algo para si. A diferença é que o sentido se perdeu na tradução e os resultados, enfim, foram bem opostos.
Como sempre, os conflitos enfrentados pelas gerações passadas recaem sobre aqueles que estão chegando. Do jeito como vivia com o apoio do pai, embora seguro, Bud Fox sentia que não podia abrir suas asas como gostaria. Seu pai nunca o fez mal, mas acabou injustamente associado a um tipo de fracasso ou contenção quando outra figura apadrinha Bud e dá tudo o que ele queria. No centro desse cabo de guerra, a juventude ignorante e inquieta mal sabe por onde caminha ou o que faz. Será este novo aspirante ao sonho americano um cidadão de morais bem definidos ou de bolsos cheios a despeito de todo o resto?
O mínimo que um papel deste requer é entusiasmo e anseio visíveis. Sem isso, Bud Fox perderia suas características definitivas e a história perderia um elo entre a honestidade perseverante e o magnata oportunista. Os sucessos de Charlie Sheen são como a atuação padrão de Tom Cruise em vários de seus filmes: competente sem causar uma impressão forte. Assim como o incrível Dustin Hoffman o ofusca em “Rain Man” , aqui Charlie Sheen sofre o mesmo perto de Michael Douglas. Herdando de seu pai a facilidade de demonstrar prepotência e arrogância, Douglas relembra grandes momentos de “Out of the Past” e “Ace in the Hole” sob máscara e contexto novos. Todos entram no mesmo saco de ganância e imoralidade, porém Douglas guarda espaço para um tipo de cinismo sobre sua índole. Possui a arrogância de atribuir responsabilidade ao sistema, como se suas atitudes fossem o padrão ou o curso natural das coisas. O personagem de Martin Sheen mostra que não acontece sempre assim. Em um papel menor, ele diz o que tem que dizer e faz um bom trabalho nisso. Novamente, não facilitando para Charlie Sheen com sua intensa presença de cena.
Mesmo que falar de Wall Street já não seja mais novidade, a obra de Oliver Stone permanece aquela que cortou mais fundo. Mais que um plano de fundo, o ambiente é usado como forma de crítica social ao estado em que o país chegou, no qual as pessoas esperam oportunidades para usar os outros como escada para o próprio sucesso. “Wall Street” deixa clara sua mensagem ácida e, mesmo assim, inúmeras pessoas foram agradecer Michael Douglas por seu personagem as inspirar e motivar. Isso já diz o bastante: a mesma ignorância criticada no filme se repete na realidade e os ignorantes, sem saber que estão sendo condenados, regozijam-se com falsos aplausos.