Pegue qualquer filme que tenha como chamativo alguma doença rara ou complicada, não é incomum que a condição seja o núcleo do filme. Com o foco centrado demais na aflição, por vezes se esquece de outros detalhes importantes. Personagens relacionados ao portador da doença são limitados a papéis pequenos ou a trama acaba negligenciada em prol de atuações fortes, coisas que, curiosamente, não acontecem aqui. Uma administração competente de personagens, de ritmo e de roteiro são apenas alguns dos detalhes que tornam esta obra tão icônica; status que não se atinge por conta de este ser “aquele filme sobre autismo”, mas sim por ser uma experiência cinematográfica de altíssima qualidade.
Charlie Babbitt (Tom Cruise) é um playboy arrogante, que pouco se preocupa com qualquer coisa que não seja ser impertinente. Dono de seu próprio negócio, faz de tudo para manter o sucesso como sua principal e única meta, até que recebe a notícia de que seu pai veio a falecer. Previsivelmente mostrando pouca consideração pelo ocorrido, Charlie se surpreende mesmo quando descobre que antes dele já existia outro filho, um rapaz autista chamado Raymond (Dustin Hoffman). Tentando usar o irmão como meio de botar as mãos na fortuna de seu pai, negada a Charlie em testamento, o playboy o leva para viajar pelas estradas da América até que consiga o que quer. Essencialmente um road movie, uma história que passa a maior parte do tempo na estrada, este longa se destaca por fazer da rodovia mais que um plano de fundo. Um desenvolvimento rico dos protagonistas deixa fácil para que os pontos sejam ligados e a viagem se torne mais que uma locomoção entre dois pontos, sendo quase uma metáfora para o processo de mudança dos participantes daquela aventura. Claro, com exceção da personagem de Valeria Golino, que pode ser muito bem considerada como uma das razões que impedem este filme de ser uma obra prima.
Além de obviamente explorar e representar a condição do autismo, esta obra vai um tanto além ao abordar outro importante aspecto. Quando uma pessoa sofre de alguma condição como a do filme, outras pessoas acabam afetadas pela doença, pois é comum que suas vidas tenham de ser reestruturadas em função da doença de alguém próxima. Ao contrário do que se pode pensar, a mudança não vem fácil e frequentemente as reações são negativas até melhorarem. Charlie inicialmente não é o mais receptivo dos irmãos, para falar a verdade ele é um tremendo de um cretino, o que torna tudo mais interessante. A evolução de seu personagem é incrível, totalmente oposta de casos onde há uma mudança é piegas de tão súbita ou quando, por conta de incompetência do ator, a mensagem acaba transmitida por outros meios. Mesmo quando o carinho por seu irmão se desenvolve, Charlie continua o garoto mimado e ignorante de antes; sua personalidade continua intacta, apesar de um sentimento ter nascido dentro dele.
A atuação de Tom Cruise inicialmente parece ser apenas um exemplo grosseiro para criar contraste com a ingenuidade de seu irmão, uma noção que logo se prova errada através de seu ótimo desenvolvimento, mesmo que seu personagem ainda não seja alguém que o espectador convidaria para tomar uma cerveja. Dustin Hoffman, por outro lado, é uma prova viva de que existe uma maneira de elaborar bem uma doença ao mesmo tempo que se tem cuidado com o resto da obra. Sua atuação é uma das mais soberbas que o Cinema tem a oferecer, fazendo outros papéis bons da carreira de Hoffman parecerem aqueles primos distantes que acabam negligenciados em favor de um parente muito mais legal.
Entrar sob a pele de outra pessoa, outra personalidade, outra vida, não é uma arte dominada por muitos, caso contrário todos seriam ótimos atores. Entretanto, há exemplos em abundância de ótimos atores que merecem o holofote por suas carreiras brilhantes. Casos como esta interpretação de Dustin Hoffman são raros no Cinema, algo como o bilhete dourado em meio a uma loja de doces: nenhum produto que se encontre ali vai ser efetivamente ruim, mas há algo especial naquela barra de chocolate que vem com o prêmio. Ver seu personagem em tela supera uma constante demonstração de atos que acionam o alerta de boa atuação no espectador; o que se tem é uma representação tão fiel, que se alguém dissesse que o ator é autista de verdade, poucos duvidariam. Tal como o próprio autismo se caracteriza na vida real, a condição de Raymond não é apenas única entre pessoas ditas normais, mas característica em meio a outros autistas. Não existem sintomas definidos o bastante para uma generalização de comportamento, cada situação mostra-se uma surpresa por seu caráter totalmente inusitado. A comoção sempre está presente, acompanhada não por um choque gratuito, mas por um genuíno sentimento de compreensão e simpatia pelos personagens em cena.
Por si este longa tem um grande valor informativo, mesmo que este não seja bem o foco, pois a representação e atenção dada ao autismo são exímias em sua execução. O filme ser de extremo bom gosto só ajuda nesse quesito, que além de chamar a atenção para si também traz uma luz bem vinda à uma doença pouco conhecida. A dupla de protagonistas rende diversas boas cenas, o que não significa que o resto do conteúdo seja de alguma forma pior, pelo contrário, o ritmo do filme é tão suave e agradável quanto a longa viagem pelo país dos personagens, obviamente sem as várias câimbras e o cansaço.