Os tempos de hoje são curiosos. Ao mesmo tempo que a censura tem se flexibilizado, com filmes cada vez mais ousados, existe controvérsia iniciada pelo próprio público quando certos assuntos são abordados. Obras como “Love” e “A Serbian Film” representam os dois pólos da profanidade de conteúdo, o primeiro com sexo explícito de deixar filmes pornô no chinelo e o segundo com um misto de violência explícita com todos os tipos de pecados possível. Ambos acenderam o alerta da classificação etária por razões óbvias, mais ou menos como “Straw Dogs” em seu lançamento por conta de uma ambivalente cena de estupro. Mas e hoje, como o filme de Sam Peckinpah seria recebido? Difícil de dizer, mas a falta de escrúpulos na representação de violência, literal ou sexual, levantar controvérsia é, neste caso, uma marca de sua competência como cineasta. Em mãos erradas, seria uma obra descartada por tentar apostar todas as fichas no fator choque.
Recém chegados numa pequena cidade do interior da Inglaterra, David Sumner (Dustin Hoffman) e a esposa, Amy (Susan George), dificilmente podem dizer que são bem recebidos pela população local. David, um matemático americano, é visto como um forasteiro indesejado por uma população acostumada a ver os mesmos rostos todos os dias nas ruas. Um grupo de homens, em especial, não vai com a cara dele e deixa isso bem claro. Eles trabalham na construção da garagem da residência do casal e não poderiam ser piores funcionários. Conforme o desrespeito torna-se cada vez mais hostil, David se vê forçado a abrir mão de sua covardia para enfrentar um problema que invade sua própria casa.
Ler Sam Peckinpah nos créditos de um filme é o mesmo que esperar uma boa quantidade de sangue na tela. Conhecido por filmes violentos, incluindo o sangrento “The Wild Bunch“, o diretor construiu seu nome com obras sem medo de mostrar a pior face da humanidade. No caso de “Straw Dogs’, Peckinpah busca mostrar como este lado negro pode levar pessoas de bem a fazer o que, normalmente, são considerados atos vis. Explorar quão longe uma pessoa pode ir em circunstâncias aversivas aparentemente não foi uma proposta objetiva o bastante. Houve quem chamou o longa de glamourização de estupro, sadismo misógino e chauvinismo masculino. Pior ainda é ver que as críticas existem a despeito dos delitos serem cometidos pelos personagens mais explicitamente imorais da história. Mas, por um lado, entendo o porquê das críticas. Muitas pessoas não se incomodaram com a presença do ato em si, e sim com a representação ambígua da mulher. Apesar do que acontece objetivamente, fica claro que as atitudes caóticas e contraditórias da personagem são resultado de uma mente incapaz de processar e, consequentemente, reagir à violação cometida.
Sam Peckinpah dá munição para a controvérsia por não ter freios numa representação forte — não necessariamente gráfica — de um estupro. Vagarosa e paciente na demonstração das emoções conflitantes da personagem; sem pressa ou problema em manter a câmera estática numa cena desagradável para mostrar como ela sofre. Não sei como alguém deveria agir durante um estupro e nem sei se quero saber, porém “Straw Dogs” traz um trabalho crível de direção e atuação; uma ilustração carnal e imperdoável com tudo menos glamourização em sua essência. Talvez confundiram os sentimentos de repugnância pelo ato, objetivo pretendido da sequência, com um antagonismo ao diretor por exacerbar esta podridão do ser humano. De qualquer forma, a existência de uma impressão forte é resultado direto de uma direção que não se limita a impressões mornas. Além do mais, uma construção de discórdia constantemente progressiva faz desta profanidade um evento completamente possível dentro do contexto apresentado. Claro, isto não é dizer que o ato é moralmente aceitável de alguma forma, mas que não é gratuito numa história centrada em violência.
A melhor parte de “Straw Dogs” é justamente o que vem antes do infame clímax sexual. A história prepara o terreno com um grupo de personagens bastante heterogêneo para maximizar as possibilidades de interação e embates. David é o típico acadêmico estudioso e introvertido, sempre com a cabeça em algum problema teórico que exige seu intelecto e um escritório com privacidade. Sua especialidade é o trabalho intelectual, usar a racionalidade para resolver seus problemas. Não é bem o estilo de vida escolhido por Amy, que usa a cabeça um tanto menos para apoiar-se na intuição e no chamado dos prazeres mundanos imediatos, ousando com sua beleza e sensualidade com certa frequência. Por uma boa parte, são os atritos do inteligente contra a esperta que acendem a faísca de “Straw Dogs”. Começa com as reclamações de Amy sobre a garagem inacabável, continua com sua barulhenta busca pelo gato na casa e culmina quando ela, carente por uma diversão mais extrovertida, passa a invadir o espaço sagrado do estudioso.
Então chega a vez dos antagonistas do casal. Estes, por sua vez, contam efetivamente com sua capacidade física, na ausência de outras qualidades. Estes últimos deleitam-se pensando no que fariam com Amy se colocassem as mãos nela, idéia desaprovada tanto por ela quanto por seu marido. Cada um tem uma característica que os outros não tem: o inteligente não tem esperteza e aptidão física; o forte carece de inteligência e esperteza; e assim por diante. Logo, quando os três entram em conflito, não deixa de ser interessante ver como cada um se adapta aos desafios proporcionados pelas capacidades diferentes do outro. Desde o começo, senti que algo estava em preparação. Alguém iria acabar externalizando uma agressão passiva e virar ordem e paz ao avesso. “Straw Dogs” é um filme que não se apoia tanto na execução de grandes momentos. Todo o processo é uma experiência tensa de ver as coisas dando errado e não poder fazer nada além de imaginar onde tudo vai dar.
Do último ato em diante, surge a maioria das imagens associadas a “Straw Dogs”. Todas as brigas e atritos, grandes ou pequenos, culminam num grande confronto, o qual, em grande parte, faz um bom trabalho na condensação dos temas até então preparados. Finalmente tiram o monstro da jaula, deixando de lado o ser humano cheio de formalidades e inseguranças por algo mais primordial. Dustin Hoffman evidencia a evolução de seu personagem covarde e incapaz para algo novo, como um cão dócil que apanhou vezes o bastante para entrar num estado de existência de selvagem, constantemente desconfiado. Assim como esperava uma boa interpretação de Hoffman, achei que veria uma continuação da direção competente de Sam Peckinpah quando a ação tomasse conta de “Straw Dogs”. Infelizmente, devo dizer que me decepcionei um pouco com a representação das cenas de ação. Falta um bom estabelecimento da geografia de cena, clareza dos movimentos e, por vezes, até um pouco de brutalidade nas demonstrações de violência. Por exemplo, quando os resultados de um golpe são incompatíveis com a força utilizada pelo protagonista. Erros como estes não matam a experiência, porém deixam no ar a questão do diretor se sair mal em algo que ele já executou muito bem antes.
“Straw Dogs” é um suspense cuidadosamente construído a fim de que o conflito seja notado como um elemento cada vez mais presente. Conforme o abuso dos vizinhos torna-se gradualmente perigoso, o espectador é guiado pelo suspense de ver tudo complicando-se. Há violência e sexualidade explícita, porém nada disso é gratuito. São justificadas narrativamente e usadas ao efeito máximo por alguém que domina a arte das imagens fortes. Em 1971, “Straw Dogs” foi motivo de controvérsia; hoje, não sei como seria. Embora a versão sem cortes tenha sido lançada, foi apenas depois de mais de 30 anos. Com movimentos sociais em alta e problematizações para todos os lados, permanece minha curiosidade sobre a recepção moderna dessa obra.