Há quem diga que o melhor filme de Quentin Tarantino é o que está para sair. Mais de uma vez já ouvi gente dizendo que cada novo trabalho supera o anterior e dá a impressão de que não há como melhorar mais. Não me considero um desses, mas não nego que prefiro seus trabalhos posteriores aos primeiros de sua carreira. “Jackie Brown”, o quarto filme do diretor, se posiciona entre os filmes bons que não chegam muito alto na escadaria da qualidade. Quase todas as características do cineasta estão ali, como o uso da música popular e o diálogo desinibido, porém o resultado finalmente falha em causar uma impressão forte.
Jackie Brown (Pam Grier) é aeromoça para uma companhia aérea de segunda linha e tem 44 anos de idade. Sua ambição de subir na carreira e ter uma vida financeiramente tranquila já não existe faz um tempo, mas ela não está preocupada. Uma graninha extra entra vez ou outra quando contrabandeia dinheiro para seu colega Ordell (Samuel L. Jackson). E até isso se perde quando um capanga conta demais para a polícia e coloca Jackie na mira da lei. Nem os tiras, nem Ordell confiam nela e nem por isso Jackie Brown deixa de ver uma oportunidade de lucrar nessa história.
Por ter assistido a “Jackie Brown” depois de todos os outros filmes de Tarantino, talvez eu esteja condicionado a esperar algo tão bom quanto o que veio depois. Claro, não está escrito em pedra que “Inglorious Basterds” é o melhor do diretor, assim como não há nada concreto que aponte ele ou “The Hateful Eight” como os donos dos melhores momentos. Sendo uma questão de opinião, minha linha de raciocínio pode morrer rápido nos olhos de quem acha “Reservoir Dogs” a obra prima do cineasta. Portanto, prefiro mudar grandes momentos no nível dos outros longas para apenas grandes momentos. Senti que falta alguma coisa aqui, como se houvesse uma extensa e vagarosa preparação para um evento que, quando finalmente chega, não tem um impacto forte. O clímax, ainda que não seja inexistente, não traz uma recompensa que compense uma história despreocupada com seguir uma agenda dramática, como uma escalação de conflito.
O que também não quer dizer que “Jackie Brown” seja abominável. Quentin Tarantino se sai especialmente bem numa tarefa: transformar eventos banais em algo divertido. Até mesmo as trocas mais simples entre personagens são carregadas de algum tipo de aspecto interessante. O fetiche por pés de Tarantino, por exemplo, ameniza a chatice de mais um monólogo de Samuel L. Jackson, dessa vez sobre metralhadoras e pistolas. Bridget Fonda, sem falar uma palavra, usa seu belo par de pés para mostrar sua curiosidade pelo brutamontes de bigode em sua sala, Louis (Robert De Niro). Em poucos movimentos, uma rede de relações se estabelece entre os personagens: um se vangloria, outro não entende direito o que escuta e a outra mostra seu desprezo pelo primeiro ao provocar o segundo. Já em outras situações, os diálogos desinibidos encarregam-se do desenvolvimento dos personagens, deixando um pouco de lado o fator entretenimento — especialmente o lado cômico das conversas.
Pode parecer o tipo de coisa que tiraria méritos deste longa, mas não me incomoda. Pelo contrário, é mais provável que eu ache pior um diálogo investido meramente no entretenimento — algo mais próximo do que se vê em “Death Proof“. Juntando isso a ótimas atuações da maior parte do elenco, já se tem uma boa quantidade de conquistas a favor de “Jackie Brown”. Curiosamente, fica aparente que as boas atuações são frutos de uma competente direção em vez de consequência direta do roteiro — eventos e atitudes definindo caráter. Tive a impressão de que o trabalho fora de tela, como a criação de personalidade e história individual não mostradas, resulta na fortíssima segurança ostentada pelo elenco. A grande idéia é mostrar que eles são, de um jeito ou de outro, gente esperta, porém não foi essa esperteza que me chamou a atenção. Maquinações, planos e diálogos elucidativos da destreza intelectual não chegam perto da competência de Pam Grier em apresentar-se como uma mulher invulnerável. Os esforços do inflado ego macho de Ordell não a afligem; ela está acima de demonstrações baratas de poder. Apenas um tipo de autoconfiança serena, como a de Max Cherry (Robert Forster), tem algum tipo de chance de fazê-la olhar para um homem com algo mais que indiferença.
Todos estes detalhes, em conjunto com o popular uso de músicas famosas, formam a melhor parte de “Jackie Brown”. O conjunto da obra deve muito à competência de Pam Grier na construção da personagem-título. Sem ela, o filme certamente desabaria e seria algo próximo do pior de Quentin Tarantino, “Death Proof“: uma extensão da rotina do diretor sem chegar a algum lugar. Este longa evita isso, mas não chega a ser algo extraordinário. Numa situação ideal, diria que estes acertos são as peças do sucesso absoluto de “Jackie Brown”, uma história com tanto mistério quanto personagens espertos e uma dinâmica perfeita entre estes dois pontos. Na realidade, o que tenho para dizer é menos enobrecedor. Estes aspectos, embora indubitavelmente positivos, mais salvam o filme do que constroem sua glória. A presença avassaladora da protagonista não esconde vários defeitos. Entre eles, não dá para ignorar a atuação morta de Robert De Niro, que já estava em processo de abraçar papéis de qualidade duvidosa e atuar preguiçosamente. Para ser pior, apenas se seu personagem tivesse tanto espaço como a trama carente de suspense. Entendo que era para essa sensação existir em algo que trata de planos arriscados e gente perigosa, mas o filme é longo demais para haver alguma tensão. Com 2h34 e pouca justificativa para tanto tempo, faz sentido que eu tenha me incomodado com o alongamento desnecessário de um enredo não muito complexo.
Mesmo fazendo um bom trabalho na representação de eventos banais, tornando-os cômicos, tensos e às vezes ricos em sub-texto, a essência de muitos deles não evolui o bastante para torná-los relevantes. Eles ainda são banais, bem representados ou não. Por um lado, pode-se argumentar que a jóia da história são os personagens, não o enredo; e pode até ser o caso, pois eles compõem o maior acerto de “Jackie Brown”. Mas então seria incoerente recompensar o espectador, que anseia por algum fruto das relações do elenco, com um clímax baseado essencialmente nos fatos da trama. Simplesmente não há foco o bastante nela para torná-la um atrativo ou uma boa base para 143 minutos de duração.