A história por trás de “Dominion: Prequel to The Exorcist” é igualmente interessante e bagunçada. O projeto de prólogo para o clássico de William Friedkin começou a tomar forma nas mãos de Paul Schrader depois que John Frankenheimer recusou o projeto e faleceu na sequência. Com o filme praticamente pronto, a produtora decidiu que não tinha muitos momentos assustadores e era muito cerebral — adjetivo frequentemente atribuído ao longa. A idéia era reciclar o trabalho de Schrader, mas o filme inteiro acabou sendo regravado e reescrito até se tornar o terrível “Exorcist: The Beginning“. Depois da recepção terrível, repensaram novamente e lançaram o trabalho original de Schrader numa estréia limitadíssima.
Num território dividido entre uma tradicional tribo africana e os ocupantes ingleses, uma descoberta arqueológica intensifica as tensões entre eles. Uma igreja cristã é descoberta debaixo da terra, sendo que ela nunca deveria ter estado ali. Nem mesmo o arqueólogo-chefe da expedição, o ex-padre Lankester Merrin (Stellan Skarsgård), tem uma explicação plausível para o achado. Conforme a expedição progride, coisas estranhas passam a acontecer com as pessoas. Entre loucuras súbitas, transformações de humor e conflitos religiosos, fica cada vez mais claro que a igreja está no centro dos males que recaíram sobre todos.
Era óbvio que duas versões de um mesmo roteiro seriam assunto de discussão por aí. Quando ainda existiam os fóruns do IMDb, era bem comum ver fãs de ambos os lados indo no fórum do outro filme para discutir qual é melhor. Do lado de “Exorcist: The Beginning“, argumentava-se que a abordagem mais tradicional do gênero Terror era empolgante, ao contrário da história pesada e um tanto monótona de “Dominion”. Em contrapartida, os fãs do longa de Paul Schrader criticavam a transformação do roteiro numa história burra e apelativa, que se apoia em sustos baratos e visuais supostamente intensos para entreter a audiência. E, claro, há quem diga que as duas versões são detestáveis. No geral, nenhuma teve uma recepção crítica positiva, com a obra de Renny Harlin tenha se saindo um pouco pior. Mesmo sem ter visto a empreitada de Schrader, pensava que fazia sentido usar o clichê se o resultado passasse mais longe do tédio. Uma opinião completamente não fundamentada em fatos e equivocada, como pude perceber depois de conferir as duas versões.
Gostar de “Dominion” é uma questão do que se espera. Adotar uma visão rasa como a da produtora, que queria um filme com sustos e facilmente associado ao Terror, é avaliar a obra de acordo com expectativas rígidas e bem definidas. Qualquer coisa fora disso acaba sendo considerada pior. Não se dá uma chance para algo diferente mostrar sua individualidade e talvez até agradar por por ser fiel a sua visão. Portanto, depende muito de quão disposto o espectador está a aceitar um filme mais vagaroso e livre da obrigação de satisfazer clichês, mesmo que isso o distancie do que se espera no gênero. Há poucos sustos? Sim. Há poucas similaridades com os outros filmes? Não. A não ser que a expectativa seja de ver algo igual ao que veio antes, não haverá frustração. Permanece preceito de trabalhar os mesmos temas sob uma abordagem nova a cada filme, mesmo que com qualidade variável.
Praticamente tudo o que vi aqui é mais sofisticado e melhor planejado do que a contraparte de Renny Harlin. Definitivamente não passou pela minha cabeça a idéia de que Paul Schrader aceitou o trabalho para ganhar dinheiro fácil à despeito do que o longa faria com sua reputação. Seu compromisso está centrado em contar a história de como um homem responsável por vários exorcismos teve um passado feito de conflito e dúvida. Ambas as versões partem dos mesmos pontos narrativos, mas os abordam de forma bem diferente. O trauma que afastou Merrin da fé envolve um encontro infeliz com nazistas e serve como um bom representante da diferença de estilo dos dois diretores. Harlin resgata o evento convenientemente durante os momentos de crise. Praticamente toda vez que Merrin é pressionado sobre sua posição como Padre, entra um flashback para esfregar na cara da audiência que ele está traumatizado. Schrader escolhe contar os eventos de uma vez só, sem esconder nada. Só volta a ser resgatado sutilmente através da atuação de Stellan Skarsgård, a qual faz bem seu trabalho de mostrar os impactos do trauma na personalidade do personagem.
Deste ponto em diante, “Dominion” trata de abordar o progresso da expedição e revelar quais segredos a igreja enterrada esconde entre suas paredes. Basicamente, este é o norte da história. Quaisquer outros sub-tramas servem a função de complementar o enredo principal. As próprias tensões entre ingleses são melhor exploradas por fazerem parte das manifestações do mal desenterrado pela expedição. Certamente nao é uma desculpa para inserir cenas teoricamente impactantes, porque tiroteios sangrentos e uma carnificina supostamente estão mais próximos do gênero Terror.
Curioso é ver como há tanta coisa diferente entre duas produções que compartilham vários elementos. A fotografia, por exemplo. é comandada por Vittorio Storaro nas duas produções. Difícil de acreditar quando a identidade visual parece tão díspar, desde as composições até a iluminação e tonalidade de locais que são praticamente os mesmos. A diferença entre o interior das igrejas ressalta novamente a diferença de estilos. O local é escuro e até acinzentado em “Exorcist: The Beginning“, com o máximo de características possível para dar uma aparência sinistra — e com Merrin entrando sozinho de noite numa tentativa de deixar o clima mais tenso, para completar. Em “Dominion”, a representação traz um lugar impecavelmente conservado e intocado pelo exterior, como faria sentido dentro da história. Há consistência na identidade visual, que não é estuprada na pós-produção por graduações de cor drásticas buscando modificá-la para corresponder ao clima de cada cena.
A maior diferença também é a mais positiva. Não demorei muito para notar a diferença enorme entre as performances de Stellan Skarsgård, que estrelou os dois filmes. Já na primeira sequência fica claro que o empenho dele é outro, ou melhor, existe algum empenho, diferente da interpretação insípida e estereotipada da outra versão. Ao invés de usar a primeira oportunidade para afirmar irritado que não é mais Padre, quase chegando a sair falando isso para quem não perguntou nada, Skarsgård traz o retrato de um homem reticente e introspectivo. Claramente atormentado por algo, ele usa a ocupação da arqueologia como alívio para o peso de sua bagagem mental. Quanto ao resto do elenco, não há nenhuma atuação necessariamente boa ou uma de torcer o nariz. Todas cumprem suas tarefas conforme as demandas da história e possivelmente isso é parte do problema de “Dominion”.
Não diria que é algo grave ou algo do tipo, talvez uma falta de ambição ou progressão dramática por trás dos eventos. Falta um pouco de surpresa, um pouco de risco para tirar a história — e a audiência — da segurança da zona de conforto. O filme parece muito contido e sob as regras para realmente instigar o espectador a se empolgar pelo que vem pela frente. Talvez seja a tal característica cerebral tão usada como crítica, porém ela não é tanto um problema quanto uma limitação. Junto com a maior competência de Paul Schrader como diretor, essa característica garante certo nível de qualidade e evita o desastre de sua contraparte genérica, embora nunca transcenda a um nível mais alto de qualidade. De tudo isso, restam problemas comuns nas abordagens de Schrader e Harlin: ambas pecam em ritmo e quase ofendem com seus efeitos especiais. Enquanto “Exorcist: The Beginning” sofre de uma direção de cena precária e tomadas extremamente curtas, distrativas de tão rápidos que os cortes são, “Dominion” é um filme um tanto devagar justamente por esta moderação na narrativa. A pressa de Harlin em pendurar crucifixos de ponta cabeça e mutilar corpos não faz falta, mas um aumento gradual de tensão não faria mal também.
Sobre os efeitos especiais, até pensei em dizer que eles são toleráveis, dadas as circunstâncias limitantes dadas pela produtora. Depois do fracasso da outra versão, Paul Schrader voltou para o projeto com apenas U$35.000 para finalizar o filme inteiro, inclusive os efeitos especiais. Caso fossem apenas as hienas, diria que não é um problema tão grande. Auroras boreais comicamente artificiais, por outro lado, são intragáveis. Tudo isso é reflexo do tratamento injusto recebido por “Dominion”. Realmente não é um grande filme ou um que seria salvo com soluções pontuais, pois existem questões mais enraizadas e não resolvidas sem uma reconcepção total da obra. Mesmo assim, nada justifica substituir um trabalho quase pronto por outro inferior e depois relançar a primeira tentativa sem dedicação alguma. Além de estrear em pouquíssimas salas, o longa saiu na mesma semana que “Star Wars: Episode III – Revenge of the Sith“. Realmente tentaram fazer “Dominion” dar errado.