Já devo ter começado algum outro texto falando sobre o site não ter problemas em falar de filmes populares. Aconteceu pela primeira vez com “American Reunion” há quase 3 anos e volta toda vez que muitos longas em preto e branco surgem na página inicial. Mas dessa vez até eu pensei no assunto com “Ferris Bueller’s Day Off”, um filme que todo mundo já viu. Clássico dos Anos 80 e do cinema adolescente da época, é muito difícil achar alguém que não assistiu em seu lançamento no cinema, nas várias exibições na televisão e, atualmente, pelos serviços de streaming. Talvez não esteja dizendo nenhuma novidade nesse texto; talvez mal chame a atenção de quem estiver acessando o site. Não são panoramas muito positivos, mas uma obra como essa merece seu espaço aqui, com certeza.
Todas as malandragens de Ferris Bueller (Matthew Broderick) não mancham sua imagem como filho querido, exemplar e responsável. Na frente dos pais, ele é perfeitamente irreprovável; no resto do dia ele é Ferris Bueller, o aluno mais maroto e louvado da escola inteira. Seus colegas o amam e respeitam, enquanto os professores o consideram o pesadelo da turma. Depois de fingir uma febre devastadora, Ferris chama dois amigos para o melhor dia de suas vidas. Só há um problema: nem todo mundo acreditou na história da febre. Suspeitando de tudo, Ed Rooney (Jeffrey Jones), o diretor do colégio, decide descobrir a verdade e acabar com os dias de moleza do garoto.
Há quem diga que “Ferris Bueller’s Day Off” é mais lembrado por fazer parte da infância das crianças dos Anos 80 do que por ser bom; como aquele filme ruim que passava na TV a cada dois meses e nunca prestou, mas ficou marcado. Dizer que é apenas uma diversão bobinha da época também não é incomum. Até cheguei a considerá-lo como algo do tipo por um tempo. Achava um bom filme e gostava dele sem nunca colocá-lo numa estima muito alta como outras pessoas, as quais considerava saudosistas. Fico feliz em dizer que esta última revisita valeu muito mais a pena do que esperava: gostei mais do longa do que nas outras vezes. Melhor do que isso, passei a enxergá-lo como mais do que entretenimento descompromissado, uma história engraçadinha de adolescentes marotos aprontando altas confusões. Por trás de todas os exageros, estereótipos e piadas há um lema extremamente válido. Longe de algo para filosofar e repensar o sentido da vida, apenas uma idéia simples que sustenta a história inteira: a vida é curta para ser gasta em bobagem, aproveite enquanto há tempo.
Se for aplicar à teoria de escrita de roteiros, retorna-se ao conceito de uma uma frase para definir a obra objetivamente. Nada de aprofundar-se nos pormenores no meio do caminho, trata-se poucas palavras representando a alma da história. Parece bobo, algo tão elementar que dificilmente alguém esqueceria. Mesmo assim, é bem comum ver histórias novas e velhas carentes justamente de um elo conectando seus eventos e personagens. “Ferris Bueller’s Day Off” demonstra fidelidade ao seu conceito e, assim, ostenta sucesso até nas cenas menores. Entrar de penetra num desfile de carros alegóricos para cantar e dançar “Twist and Shout” pode até parecer um clássico exemplo de cena resumida a sua qualidade de ser legal. Não avança a história, porém parece muito boa na cabeça do roteirista. Ele se sente ansioso e até empolgado para colocá-la no produto final, crente que todos gostarão dela como ele.
Às vezes acontece exatamente isso, às vezes não. O problema surge quando a obra inteira é composta de cenas como essa e o produto final fica apenas legal, sem profundidade alguma. Pois bem, não é isso que acontece em “Ferris Bueller’s Day Off”. A cena é realmente muito divertida. Cumpre sua função de ser engraçada e, mais importante, mantém-se junta da proposta de criar um dia inesquecível. O responsável pelo grande dia é o próprio Ferris. Ele tem a idéia de matar aula para curtir um dia épico, acorda e convence o deprimido Cameron (Alan Ruck) a sair de casa, consegue roubar Sloane (Mia Sara) da escola e tem todas as boas idéias. Em suma, é com ele que as piadas surgem, ao passo que o efeito delas sobre a história é visto em Cameron. Tudo tem seu lugar, afinal de contas.
No mínimo, isso demonstra uma solidez debaixo de toda a comédia. “Ferris Bueller’s Day Off” é mais do que episódios com a simples intenção de tirar umas risadas do espectador. O próprio protagonista olha para a audiência e diz o significado de tudo aquilo antes mesmo da aventura pelas ruas de Chicago começar. Exposição barata? Sim e não. Ele de fato verbaliza o ideal de aproveitar a vida porque ela passa rápido, porém o faz de um jeito tão obviamente expositivo que não dá para ser levado a sério. Sendo uma técnica perigosa como é, dificilmente funcionaria nas mãos de um diretor pouco capaz. Por sorte, John Hughes é o homem dando as ordens. Em suas mãos, fazer o personagem olhar para a câmera e falar diretamente com a audiência é mais uma das inúmeras formas de criar humor. Um tipo inteligente, vale dizer, pois cria a ponte entre forma e conteúdo. A mesma ferramenta transmite a moral da história, se posso chamar assim, e funciona como efeito cômico. Comédia com substância, basicamente.
É uma questão de encaixar as coisas numa proposta maior e, claro, saber ser engraçado no processo. Assim como a falta de estrutura pode matar uma obra — como a falta de um núcleo bem definido — ter apenas isso não é suficiente para um bom resultado. Além de quebrar a quarta parede, outros elementos difíceis de lidar também estão em jogo. Estereótipos e clichês, por exemplo. É paradoxal, na verdade. Se o clichê é usado de forma criativa e nova, ele ainda é um clichê? Fica perfeitamente claro que Cameron tem a função de ser o cara baixo astral do grupo. Sua primeira cena mostra ele jogado na cama ao som de um eco monótono e uns rifes de guitarra, fazendo o mínimo esforço possível para atender o telefone. De certa forma, é a diva com problema de primeiro mundo, dopada de remédios para não despertar sua enxaqueca. Similarmente, o diretor da escola é um vilão de desenho animado desde as atitudes ao bigode, cujas cenas são como as tentativas falhas de impedir seu arqui-inimigo Ferris Bueller.
São modelos conhecidos e nem um pouco originais que funcionam perfeitamente porque cumprem duas funções essenciais: humor e propósito. Basta comparar o monólogo criativo do começo de “Ferris Bueller’s Day Off” com as cenas na escola. De um lado, o carisma de Matthew Broderick e as idéias maduras de um jovem imaturo; do outro, o óbvio desinteresse de uma turma falhando em impedir que o professor chato tente interagir. “Em 1930, a Câmara dos Representantes, num esforço de aliviar os efeitos da… Alguém? Alguém?… Grande Depressão, aprovou a… Alguém? Alguém?”, ele diz. É engraçado, criativo e certeiro em abordar uma situação que todo mundo já enfrentou na vida. A escola é realmente um saco. Pra que perder tempo aprendendo conteúdo que nunca será usado na vida quando é possível fazer outras coisas muito mais recompensadoras? A vida é curta demais para cristalizar uma personalidade medíocre, mas que sabe quem fez o que e quando durante a Grande Depressão.
No final das contas, valeu a pena tirar um tempo para escrever sobre “Ferris Bueller’s Day Off”? Certamente. Confesso que não estava muito a fim de assistir por ser minha terceira ou quarta vez, mas acabei indo pela oportunidade de ver no cinema pelo Clássicos Cinemark. Foi uma sessão lotada, cheia de gente que, como eu, já conhecia história de ponta a outra e outros tantos que usavam a oportunidade para conhecer uma das obras mais amadas dos Anos 80. Mesmo que até os mais jovens agora conheçam Ferris Bueller, deixo este texto como reforço ao coro de aplausos e ovações. John Hughes acertou em cheio em 1986 e continua acertando, já que sua obra continua relevante até hoje.