Dizem que criminosos vivem bem, mas vivem pouco. O crime é um caminho que traz lucro alto e rápido, pois até neste ramo e suas particularidades ainda existe a lógica da oferta e demanda. Com poucas pessoas dispostas a arriscar a vida para vender um produto ilegal e lidar com todas as variáveis perigosas, o retorno acaba sendo maior. Não é uma barganha que muitos aceitam, então, de sua forma, o cinema satisfaz a curiosidade sobre a vida do outro lado da lei sem colocar nada em risco. Entre variações dessa proposta, grandes personagens surgiram: Tony Montana e sua ambição colossal em “Scarface“, a peculiar tradição da Família Corleone em “The Godfather“; e, claro, “Bonnie and Clyde” e o casal de bandidos da vida real que inspirou tantas outras histórias.
Não há muita vida no interior do Texas. Para a infelicidade da jovem e cheia de vida Bonnie Parker (Faye Dunaway), é raridade haver movimento nas ruas. Um empreguinho no café local nem de longe faz ela extravasar toda sua energia, mas isso muda com a chegada de Clyde Barrow (Warren Beatty) e seu estilo de vida arrasador. Nada de trabalhar detrás de uma escrivaninha ou um balcão, Clyde rouba bancos. É muito mais do que a empolgada garota poderia desejar.
Pensando agora, sinto ainda mais arrependimento de não ter ido assistir a “Bonnie and Clyde” quando esteve em cartaz pelo Clássicos Cinemark. Além dos típicos benefícios de assistir a algo numa sala de cinema, ainda haveria a fotografia incrível de Burnett Guffey numa telona. Por sorte, é fácil compensar vacilos como este na era da internet. Ainda que numa televisão, todos os sucessos por trás da revolução desta obra puderam ser conferidos. Mais que um bom filme e a mais popular adaptação da história do casal, o longa ajudou a alavancar uma nova fase do cinema americano. Um amor alimentado a crime fez da Nova Hollywood uma realidade. Hoje pode ser difícil notar essas novidades gigantes por conta delas já serem comuns, o que não quer dizer que sejam ineficazes aqui. Mas o que elas são, exatamente? Violência e sexo. Dois elementos amplamente banalizados no Cinema há muito tempo.
A diferença de um filme simplesmente inovador para outro que inova e funciona em uma nova época nunca passa despercebida. Se tiroteios violentos e intimidade entre o casal principal fossem as únicas armas de “Bonnie and Clyde”, tenho certeza que não seria um clássico tão renomado. O roteiro usa ambas qualidades numa história que não se limita a elas, envolvendo tantos outros aspectos nas viagens da Gangue Barrow. Na época, seus atos fizeramam a felicidade dos jornais, que sempre tinham material chamativo para publicar, e do público, que passou a enxergá-los como celebridades e se interessar por suas vidas. Foi exatamente este tratamento glamourizado e romantizado que esperava: as aventuras de criminosos que se divertem em sua odisséia criminosa pelo país. Curiosamente, foi justamente o contrário que encontrei.
Para não dizer que minha expectativa estava totalmente errada, há uma boa dose de leveza e diversão nos personagens. Nenhum dos envolvidos considera roubar bancos um absurdo, algo abominável pela sociedade e até por eles, mas que acabaram escolhendo por conta dos benefícios. A idéia de passatempo de Clyde Barrow é entrar numa mercearia e roubar todo o dinheiro do caixa. Não como um sociopata sem remorso ou noção do peso de suas atitudes, mas como alguém que aparentemente tem uma noção curiosa de entretenimento. De resto, expectativas de tranquilidade e fartura não são refletidas na realidade. Ao contrário de Tony Montana e a ostentação de seu sucesso quando este vem — apresentando-se em carros de luxo, mansões, mulheres e poder — não há gratificações para os bandidos desta obra de Arthur Penn. Até parece que é algo passageiro, uma má fase no começo antes das coisas boas começarem a vir, mas não há nada de elegante ou luxuoso em “Bonnie and Clyde”.
Como toda boa história, “Bonnie and Clyde” não empaca nisso. Se fosse um fracasso do começo ao fim, faltaria alguma coisa na história; talvez pareceria que não houve nenhuma novidade em suas 2 horas de filme. Felizmente, o fracasso é, embora dominante, uma das fases pela qual os personagens passam. Há um rodízio dos eventos rodeando o cotidiano dos criminosos, o qual dá atenção para os crimes, seus resultados duvidosos e, efetivamente, à vida pessoal dos envolvidos. Para uma história relativamente simples, é impressionante quão dedicados os atores se mostram. Ambos Warren Beatty e Faye Dunaway estão muito bem em seus papéis de destemidos jovens descarregando a tensão por meio do crime. Dunaway transmite uma inquietação interna, quase sexual, totalmente através da comunicação não verbal. Qualquer tentativa de exprimir com palavras o que ela consegue sem dizer nada seria bobagem. Bem escrito ou não, um diálogo exporia uma idéia melhor sentida do que falada. Já o personagem de Beatty tem uma relação complementar com o roteiro: por fora, o ator traz bom humor e otimismo para esconder a desilusão, que, por dentro, tem suas máculas psicológicas. A frustração do mundo real e suas convenções enfadonhas os levaram ao crime, porém o crime não traz toda a satisfação que buscavam. Eles recorrem a outras coisas, como publicidade e fama, para compensar, então vêem que talvez a vida boa esteja em coisas mais simples.
Dos atores coadjuvantes e seus papéis mais simples, não tenho nada a reclamar nem a elogiar. Gene Hackman e Michael J. Pollard têm funções pontuais e apenas servem de acompanhantes quase passivos nas viagens da dupla principal. Só fico sem entender como Estelle Parsons conseguiu levar um Oscar por uma interpretação tão sem sal. Não que chegue a ser ruim, é como as palavras da Blanche Barrow verdadeira, personalidade que Parsons interpreta: “Esse filme me fez parece um traseiro de cavalo berrante!”
No final das contas, os tais elementos revolucionários não fazem tanta diferença hoje porque os reais acertos de “Bonnie and Clyde” estão em outros lugares. Eles fazem alguma diferença? Sem dúvida. Historicamente, abriram as portas para a apresentação de temas considerados vulgares e totalmente proibidos anos antes durante o Código Hays. Narrativamente, ambos suplementam o envolvimento íntimo de Bonnie e Clyde e trazem um maior impacto para os tiroteios e suas consequências. Mesmo não sendo uma parte impactante da obra hoje, rende um ótimo final, que certamente marcou uma audiência acostumada com outra coisa.