A evolução é algo curioso. Simplesmente. Sem entrar em méritos de Darwin e aplicação do conceito pensando no desenvolvimento de espécies. Digo isso pensando nas coisas que acontecem diferente das previsões. Robert Zemeckis achou que 30 anos seriam o bastante para a existência de carros voadores e Kathryn Bigelow que 1999 seria um ano e tanto em “Strange Days”. Ao menos para mim, ver que skates deveriam flutuar e tênis se amarrar sozinhos em 2015 não me tira da experiência. Hoje, em 2017, encontrar previsões dando errado é um prazer extra tão divertido quanto as idéias absurdas em si. E melhor: completamente sem querer.
O Ano é 1999 e a virada do milênio está chegando. A população gradualmente se entrega a um misto de emoções variadas quando param para pensar no que está por vir. Tensões sociais crescem e ameaçam estourar a qualquer momento enquanto a polícia mantém punho firme em sua abordagem violenta. Está uma zona para todos, mas não tanto quanto para Lenny Nero (Ralph Fiennes), um ex-policial que entrou para o mercado negro. Seu produto principal é vender as experiências dos outros, as quais podem ser vivenciadas por qualquer um que tenha um aparelho que recria sensações, emoções e estímulos. Interessante e lucrativo até que o estupro e assassinato de uma prostituta amiga de Lenny é capturado em vídeo e deixado em suas mãos.
Já é bem sabido que Kathryn Bigelow foi esposa de James Cameron, fato amplamente comentado em 2010, quando ambos foram indicados ao Oscar de Melhor Filme e Diretor por “Avatar” e “The Hurt Locker”. Os sites de notícia não perderam a oportunidade de estampar o suposto confronto entre o ex casal de cineastas, que esteve junto entre os Anos 80 e 90. Lembrar de tudo isso pode fazer sentido quando “Strange Days” revela um roteiro escrito por Cameron e, eventualmente, um filme muito similar ao seu estilo cinematográfico. No entanto, o longa foi lançando em 1995 enquanto o relacionamento acabou em 1991. Deve ter sido um término amigável para Cameron deixar um roteiro tão interessante nas mãos de Bigelow. Merecidamente, resultou num dos trabalhos mais famosos da carreira da diretora. Pode não ser um filme tão excelente quanto icônico, mas suas qualidades fazem dele um ponto fora da curva quando se pensa na avalanche de clichês de Ação dos Anos 90.
“Strange Days” tem um ar muito familiar, apesar de ter certeza de nunca ter visto este ou qualquer outro trabalho da diretora. A explicação veio com o roteiro de James Cameron e as várias características de sua carreira que vieram junto. O protagonista da possui um traço de humanidade em sua visível vulnerabilidade. Diferente do clichê de personagem imbatível e incrivelmente capaz de quebrar a barreira do possível, Lenny Nero está mais para um Kyle Reese. Ele apanha vez após vez, tem de se recuperar, toma decisões idiotas e demora para finalmente socar alguém como tanto quis. Além do mais, não pode contar com a polícia para resolver um problema maior que ele, pois nem ela presta muito com uma equipe de céticos ou corruptos. O recurso que sobra é a ajuda de uma personagem feminina forte e não muito longe de Sarah Connor. Somando isso à visão distópica de um futuro dominado pelo caos e à uma estética reminiscente de “The Terminator”, não resta dúvida da semelhança. Felizmente, ela é extremamente benéfica por pegar a melhor parte destas outras obras.
Isso não quer dizer que “Strange Days” não tem identidade própria. O melhor vem diretamente da direção de Kathryn Bigelow e suas individualidades. As idéias são boas e o orçamento, farto. A diretora faz jus a ambos em cenas que valorizam tanto o ambiente como a ação; tanto o contexto social caótico como os protagonistas se arriscando para salvar alguém. A atenção dada às ruas pegando fogo, praguejadas pela polícia em conflito com os habitantes são um toque interessante sob outros elementos mais evidentes. Entre eles, a ação constantemente satisfatório e a presença do SQUID, o aparelho que grava memórias. A máquina gruda no topo da cabeça e reproduz seu conteúdo por meio de um disco. Basta o usuário fechar os olhos para enxergar pelos de outra pessoa e sentir tudo o que ela sentiu. Em outras palavras, uma porta aberta para uma direção inventiva.
Os grandes momentos de “Strange Days” são aqueles em que a câmera muda para primeira pessoa e simula a perspectiva de alguém. De repente, o espectador está numa praia afundando os pés na areia, molhada por ondas que vão e vem. É um dia ausente de preocupações, ensolarado e com boa companhia. Aos que esperavam outra coisa, há também bastante espaço para cenas agitadas e outras completamente chocantes, como um estupro vivenciado em primeira mão. Chocante e efetivo sem banalizar o ato em prol do entretenimento. Uma demonstração da criatividade da diretora em transformar o cinema numa experiência sensorial despretensiosa. Curiosamente, este ponto traz um ponto ruim junto de seus acertos. Pelo SQUID ser cada vez mais central para a obra, seja pelo modo como ele é explorado visualmente ou pela importância dada pela trama, todo o resto perde força e aparenta mais ser uma tentativa forçada de crítica social em vez de enriquecimento de universo. Não é um problema muito grave, não perto da atuação plástica de Juliette Lewis ou da inexplicável necessidade clichês. Fica especialmente pior na conclusão e sua sequência de coincidências e golpes de sorte abençoados. Dificilmente algo assim funciona. Menos ainda numa quantidade tão grande em tão pouco tempo.
Por um tempo pensei em dizer que “Strange Days” e sua idéia de reprodução de perspectiva são tipo um video-game. De certa forma, não estou errado, contanto que esclarecimentos sejam dados. Não me refiro à noção ultrapassada que trata jogos como divertimento descerebrado em sua totalidade. Se estivesse, minha comparação com o SQUID seria apenas parcialmente aplicável. Hoje em dia, os jogos evoluíram o bastante para colocar equipes gigantes na função de trazer à vida temas maduros de uma forma interativa. Embora um filme de ação em sua essência, este longa consegue capturar parte desta interatividade em sua aplicação da Realidade Virtual na história. Por mais que erre na data por algumas décadas, é uma forma inteligente e bem executada de aprofundar a obra.