Mesmo tendo ouvir falar melhor de “Mystic River”, esperava que ele fosse o filme que achei que “Gran Torino” seria. Em outra da minha série de pré-concepções inexplicáveis, troquei as bolas quanto a obra definitiva de Clint Eastwood como diretor. Não vi todos os seus trabalhos dirigidos, mas imagino que muito dificilmente alguma superará a grandiosidade de “Mystic River”. Afinal de contas, pouquíssimos filmes de qualquer diretor chegam no mesmo nível. Este é o resultado de personagens bem construídos tendo uma função ativa na história, usando suas próprias singularidades para transformá-la em algo que nunca seria tão complexo se resumido aos fatos.
Três amigos inseparáveis quando crianças crescem para se tornar adultos distantes. Sean (Kevin Bacon) se tornou detetive da polícia de Nova York; Jimmy (Sean Penn) envolveu-se com o crime e acabou como dono de uma mercearia local, embora bem conectado; e Dave (Tim Robbins) transformou-se num recluso, prisioneiro de seus próprios pensamentos. Um evento traumático os separou na infância e outro os uniu novamente na vida adulta. Juntos pelo acaso e em circunstâncias menos amistosas, os três homens descobrem que muito do que se considerava esquecido não ficou enterrado no passado.
O lado bom de uma surpresa agradável é óbvio o bastante para explicações serem dispensadas. Mesmo assim, existem níveis e níveis de intensidade desta surpresa. Um filme pode ter uma estigma negativa antes do lançamento e não ser tão ruim como a maioria esperava. Isso não quer dizer que ele seja bom, apenas mais decente do que o fracasso antecipado. “Mystic River” se encaixa entre filmes que criam uma expectativa positiva desde o começo e vão muito além dela por estar em outro grupo: os melhores de todos os tempos. Dito isso, é apenas natural que também esteja entre os maiores sucessos de Clint Eastwood como diretor — se não o maior. O próprio Oscar reconheceu tal qualidade com 6 indicações, resultando em duas vitórias no campo da atuação: um para Tim Robbins, outro para Sean Penn. Se não fosse a retumbante presença de “The Lord of the Rings: The Return of the King” no mesmo ano, não tenho dúvidas de que haveriam mais estatuetas.
Mas não é como se os prêmios dados sejam inadequados, um tipo de consolo. Ambos os atores vencedores entregam performances sólidas que não devem nada a como eles estão escritos no roteiro. Nem o conceito, nem a representação de emoções nutridas ao longo de décadas são jogadas no lixo. Saber usar o pretérito no presente é um passo gigante diante de tantas outras obras que reservam momentos passados para flashbacks expositivos, incluídos por um roteiro que revelar informações na tentativa de evitar mistérios confusos. “Mystic River” coloca as cartas na mesa logo em suas primeiras cenas. Não há nenhuma descoberta de grande trauma secreto para justificar as atitudes peculiares de alguém, os fatos são claros e o destaque fica em suas consequências.
É como um desvio milesimal entre duas retas, que começa desprezível e torna-se crítico mais adiante. Ou numa esfera mais pessoal, é como andei pensando há uns meses: de que forma um evento pequeno, provavelmente ignorado na época, pode ter influenciado quem eu sou e onde cheguei hoje? Sem perder eficácia no caminho, a discrepância entre um evento e sua influência no futuro é levantada indiretamente por uma história que, em sua superfície, trata da investigação de um crime. Por si, este arco mais explícito é cativante e executado como um bom filme policial, sendo que, na verdade, o grande sucesso está por conta da profundidade do envolvimento dos personagens que compartilham um passado. Não se trata de haver gente interessante, e sim de gente interessante cujas qualidades influenciam o direcionamento da história.
Uma obra como essa merece ser apreciada sabendo-se pouco. Quanto menos conhecimento sobre o material, melhor. “Mystic River” oferece uma rara oportunidade de acompanhar o desenrolar da história como um processo orgânico. Apenas vez ou outra é possível enxergar uma cena como artifício cinematográfico e encará-la como um momento previsivelmente dramático, por exemplo. De resto, é como viver numa cidade por alguns anos depois retornar para descobrir que mercadinhos fecharam e vizinhos se mudaram. No caso deste longa, isso funciona na base de ligar os pontos entre duas época distintas e deleitar-se com atuação e roteiro caminhando juntos na construção de uma ponte entre estes extremos. As crianças mostradas em cenas iniciais são homens crescidos e independentes poucas cenas depois. Mais do que isso, são personagens que despertam o interesse de saber o que aconteceu para eles se tornarem assim.
Rostos enrugados pelas dificuldades de anos de vida substituem feições joviais e uma nova caracterização encarrega meninos que tinham apenas o lazer como preocupação. Por ser uma grande mudança em todos os sentidos, como aparência e comportamento, apenas interpretações competentes conseguiriam tornar a transição plausível. Quanto a isso, elogios são merecidos até quando o elenco geral é considerado. Sem espaço para estereótipos ou exageros gratuitos, existe harmonia entre função e execução. O tom dramático de uma cena não abre descontroladamente o fluxo de emoção; assim como personagens menores e de qualidades limitadas possuem papéis adequadamente simples.
Isso é apenas o que está ao redor dos três grandes pilares compostos por Kevin Bacon, Sean Penn e Tim Robbins. Tudo gira em torno deles e da amizade que um dia compartilharam. Sem o elo que os uniu um dia, o reencontro de conhecidos que se desconheceram proporciona a reapresentação de personalidades para o espectador e para eles próprios. Todos os três trazem uma performance esplêndida desta relação peculiar, representando genuinamente o desconforto da ocasião e o motivo por trás dele: personalidades construídas separadamente. Mas destes sucessos, apenas o de Tim Robbins me fez acreditar que estava vendo uma singular excelência entre outras fortes performances. O conflito e sua profundidade não eram apenas representados de forma crível, Robbins os fazia serem sentidos diretamente num plano emocional, comovendo o espectador em sua passagem de confusão delirante para riso histérico e eventual choro sofrido.
Entre minhas poucas críticas, incluo a falha de Sean Penn em demonstrar emoção carregada com a mesma eficiência. São poucos momentos que exigem dele essa alta intensidade, mas não deixa de ser notável como sua tentativa resulta em exagero e artificialidade. Além disso, só posso dizer que “Mystic River” perdeu a chance de concluir a história por minutos adicionais que mais parecem um epílogo descartável. São detalhes pequenos, perceptíveis e responsáveis por “Mystic River” não ser uma obra prima. No final das contas, porém, eles nunca chegam perto de tirar o mérito de filme de qualidade raramente rivalizada. Nostalgia dolorosa aliada a um enredo baseado no mistério são concretizados e potencializados pelo sublime esforço de um elenco ciente das demandas do roteiro. Uma equação aparentemente simples com resultados estupendos.