Não, “Scarface” não é melhor que “Scarface“. Não que eu esperasse que o original de 1932 fosse superar a obra prima de Brian De Palma, mesmo sendo dirigido por Howard Hawks, apenas algo melhor do que acabei vendo. Tratado como um dos melhores filmes de gângster dos Anos 30, este conto sobre a ambição e ganância de um criminoso ítalo-americano tem seus pontos altos, mas nunca alcança seu potencial narrativo por culpa de influências externas já explicitadas nos créditos iniciais. Infelizmente, a história teve de seguir preceitos morais em vez de se dedicar às aspirações narrativas originalmente planejadas por Howard Hughes e o próprio Hawks, os produtores do longa. Hollywood perdeu a chance de criar uma obra-prima em 1932 e atrasou seu lançamento para 1983.
A morte de um dos chefões da Máfia de Chicago abre um vácuo no poder e uma oportunidade para Johnny Lovo (Osgood Perkins) expandir sua operação. Numa época em que o crime organizado dominava uma parte respeitável da cidade, Lovo e seu braço direito, Tony Camonte (Paul Muni), rapidamente começam a tomar a cidade para si. Mas este reinado é frágil. Tony despreza hierarquia e não demora para passar por cima de seu próprio chefe em sua missão de tornar todo e qualquer delírio de grandeza em realidade.
Confesso que me sinto tentado a escrever um texto inteiro de comparações por gostar tanto do filme de Brian De Palma, mas iria contra a proposta de uma análise. Julgar sucessos e fracassos por critérios estritamente comparativos é ser injusto com o trabalho criativo de um artista. Poderia dizer, por exemplo, que esta versão de 1932 tem um roteiro apressado e apresenta o arco de Tony muito rápido. Uma afirmação injusta, já que sua contraparte tem praticamente o dobro de duração para desenvolver a história. Evitando coisas como essas, não há nada que me impeça de traçar alguns paralelos para enaltecer pontos relevantes sobre o clássico “Scarface”. Assistir o remake antes mostra como muitas de suas qualidades não surgiram do nada, pois tiveram uma base sólida na obra de Howard Hawks. É de se esperar, sendo um remake, mas dada a qualidade de muitos trabalhos recentes deste tipo, elogios devem ser honrados pelo espírito da obra ter sido conservado.
O primeiro elemento positivo que me vem à mente é o protagonista. Tanto Tony Camonte como Tony Montana são perfeitos representantes dos temas da obra. Mais especificamente, das consequências de querer demais num mundo que não perdoa ninguém. Ambos são similares por suas personalidades excêntricas e inconsequência de chegar ao topo a qualquer custo. As diferenças surgem nos detalhes. O Camonte de Paul Muni é mais descontrolado e impulsivo, pensa menos e age como uma criança quando uma Thompson está na sua mão. Como um cão, basta dizer a palavra mágica — sucesso — para colocá-lo num modo de êxtase descontrolada. É uma atuação exagerada em todos os sentidos cujo propósito na história e em sua conclusão, especialmente, é totalmente justificado. Muni passa a linha do aceitável apenas nas cenas finais, tarde demais para manchar sua sólida interpretação de um criminoso eufórico e sarcástico, um verdadeiro canastrão.
Além do mais, é interessante ver como esta presença tão forte age sobre o elenco, Johnny Lovo e Poppy (Karen Morley) sendo os melhores exemplos desta rede de relações. Lovo é solidamente interpretado por Osgood Perkins como o contraponto de Camonte. O cauteloso e o imprudente em um mesmo lugar sem necessariamente existir um embate direto entre estas qualidades. Ambas são úteis para um criminoso, porém não determinantes de sucesso. Suas ramificações são melhor vistas na forma como Poppy reage a cada uma, seja com atração dificilmente resistível ou desdém. No fim das contas, inteligência e esperteza mostram-se mais essenciais para chegar no topo, o que a trama deixa bem claro. Apenas Cesca Camonte (Ann Dvorak), irmã do protagonista, entrega resultados ruins de sua relação com Tony, mas, pensando bem, ela é uma personagem mal escrita e interpretada desde o começo.
“Scarface” começou em um contexto diferente. No lugar da ensolarada Miami transbordando luxúria, o ambiente é a grande Chicago dominada pelo crime. A proibição da venda de álcool e a imigração pouco rigorosa trouxeram tempos violentos para os cidadãos nas mãos de gente como Tony Camonte. Elementos como os benefícios daquele modo de viver e a exaltação da luxúria não têm lugar aqui. Desconsiderando as mensagens morais, “Scarface” faz um ótimo trabalho em mostrar a decadência daqueles indivíduos. Ternos com flores no bolso não melhoram suas imagens porque suas poses permanecem pomposamente arrogantes. Saindo das cores vibrantes de conversíveis, praias, clubes e discotecas, a fotografia abraça soturnos tons de preto e branco para ilustrar uma realidade imunda. Influências expressionistas se apresentam na clara distinção entre tons claros e escuros e no destaque das sombras, em especial. A escuridão de caráter e ambiente se reflete nas imagens. Muitas vezes, o branco está apenas em partes seletas do quadro, revelando apenas o minimamente necessário para que se possa distinguir alguma coisa na tela. Além de um valor estético que resulta numa das melhores fotografias em preto e branco de todos os tempos, não são poucas as cenas que se tornam mais fortes ou, no mínimo, melhor estilizadas.
“Scarface” tem poucos pecados. Um deles, especificamente, bem grave: seu moralismo. O infame Código Hays, que controlava o conteúdo do cinema, foi adotado em 1930 e realmente colocado em prática em 1934. Neste meio tempo, “Scarface” foi produzido já sob escrutínio da censura, que vetou muitas das idéias da produção de fazer este filme mais violento e sem restrições na representação da imoralidade. Foram longe até na contratação de Richard Rosson como diretor para filmar novas cenas e tornar a obra mais politicamente correta. Uma proposta totalmente infeliz e responsável por cenas que claramente destoam do resto da trama, desnecessárias porque, por si, a obra já havia feito um bom trabalho em representar seus personagens como imorais. Tudo começa com uma introdução em texto incentivando o povo a pressionar o governo para fazer algo a respeito de bandidos como os do filme. Outra cena traz um monólogo do chefe de polícia dizendo que Camonte vai cair porque não pode se esconder atrás de advogados e dinheiro a vida toda. Finalmente, a própria audiência é atacada quando um comitê de cidadãos de bem questiona um editor de jornal por usar a máfia como manchete, uma alfinetada no público que se interessava pelo espetáculo dos populares filmes de gângster da época. Não bastou dizer que os personagens estão errados, o espectador acabou sendo atacado por gostar de bons filmes e intimidado a ser um bom samaritano. Sem contar que viu seu entretenimento se transformar num veículo político de moralismo barato. Obrigando por estragar um ótimo filme em potencial, Richard Rosson.
Novamente, uma comparação com o remake dá uma boa idéia de como as coisas poderiam ter sido sem limitações externas. O clássico teve conteúdo conteúdo cortado e foi moralmente amenizado; a versão de 1983 teve violência explícita, uma quantidade generosa de palavrões e foi criticado em seu lançamento por ser profano demais. Foi apenas mais tarde que a recepção foi revisada e ele se tornou um dos melhores filmes de Gângster de todos os tempos. Imagino que se não seria diferente com “Scarface”: muitos se incomodariam com o conteúdo forte, mas a proposta artística se fortaleceria.