Quando um trabalho artístico é criticado, é bem frequente que o infeliz crítico seja acusado de não entender a obra. Já ouvi isso vezes o bastante para descobrir que não é um argumento racional, estando mais para uma resposta automática daqueles que gostaram da obra. Em obras como “A Árvore da Vida“, há muito para não ser entendido entre um Sean Penn introspectivo, os Anos 50 e dinossauros. Mas e quanto a “Payback”? É uma proposta simples o bastante e, no entanto, admito que não entendo por que tanta gente gosta dele. Diferente do filme de ação direto ao ponto, como eu esperava, encontrei uma coleção pouco inspirada de clichês de gênero.
Alguns tiros nas costas foi o que Porter (Mel Gibson) recebeu no lugar de 70 mil dólares que eram seus. No que era para ser uma operação de rotina, ele é traído e tem seu dinheiro roubado. Depois de uns meses se recuperando, ele volta à ativa com um objetivo bem simples: recuperar o que lhe era devido. Muita coisa mudou neste meio tempo, mas Porter não quer saber de detalhes. Apenas quer chegar naqueles que o traíram, mesmo que isso signifique encurtar a expectativa de vida de várias pessoas.
O diretor de “Payback” não é ninguém menos que Brian Helgeland: a mente vencedora de um Oscar pelo roteiro de “L.A. Confidential“, nada menos que um dos melhores Neo-Noir de todos os tempos. Apenas dois anos após seu premiado trabalho, Helgeland estréia sua carreira como diretor com este longa-metragem estrelado por Mel Gibson. A princípio, parecia estar tudo certo para um filme decente. Gibson estava numa ótima fase de sua carreira, com uma produção grande atrás da outra e vários sucessos comerciais e de crítica em seu nome; enquanto Helgeland retornava a um cenário familiar envolvendo imoralidade, armas e ação. O resultado, curiosamente, é menos do que se espera de uma combinação aparentemente apropriada. Antes mesmo de descobrir quem era o diretor — ou que o material base é o mesmo livro que inspirou “Point Blank”, de John Boorman — tinha a modesta expectativa de me divertir com um típico blockbuster de vingança. Esperei demais, aparentemente.
A maior decepção foi ver que, tratando de enredo, “Payback” é um produto de segunda mão. Inúmeras ligações com o Neo-Noir foram feitas pela crítica na época, dada a entonação mais sombria da trama, embora eu não concorde com elas. Em primeiro lugar, porque ter um protagonista mais durão do que o normal não define gênero. Em segundo lugar, a presença de Brian Helgeland torna inevitável a comparação com outras obras suas. E não há sequer uma sombra do sucesso de “L.A. Confidential” aqui, apenas uma tentativa falha de resgatar a incrível personagem de Kim Basinger com mais uma prostituta de bom coração. Para não ser injusto com o cineasta, ele abandonou o projeto quando a produtora rejeitou sua versão do filme, resultando em 30% da obra refeita nas mãos do Designer de Produção. Sendo assim, não dá para saber até que ponto suas decisões influenciaram o desastre final.
De qualquer forma, o resultado é bem aquém de uma experiência descompromissadamente divertida. Idealmente, era para ser uma variação do típico filme de ação com o protagonista super-herói. Substituir este protagonista estereotipado e conservar as cenas de ação eletrizantes e o elenco de personagens peculiares. Fraseando melhor, era para ser uma versão boa de tudo isso, ao contrário do conceito preguiçosamente executado em uma história rasa e cenas de ação pouco empolgantes. Parece que tudo parou pela metade em termos de desenvolvimento. Porter é um protagonista diferente dos clássicos John McClane e James Bond por não ter muitos escrúpulos. Ele quer seus U$70.000 e está disposto a encher de chumbo quem se opor a este objetivo. Sem pensar muito na imoralidade de tais atos, Porter acredita apenas na sua capacidade de conseguir o que quer. No seu caminho, ele encontra o homem que o traiu, no maior estereótipo de traidor covarde; uma organização que controla a cidade toda de escritórios cheirando a madeira velha; uma prostituta de boa índole; uma prostituta de má índole; e a dupla de policiais corruptos e folgados. Se fosse uma piada de mau gosto, “Payback” funcionaria melhor. Do jeito que se apresenta, há muito pouco para ser aproveitado.
Não tenho nada contra propostas simples ou clichês, desde que estes sejam bem executados. “Payback” tinha potencial para ser um filme muito melhor do que é — ainda que este melhor não seja nenhuma obra prima — e decepciona por nunca transcender sua mediocridade. Praticamente tudo o que se espera de uma obra mediana está aqui. Há a narração soturna para tentar tornar o clima mais sério e o carisma de Mel Gibson menos evidente, mas não deixam de guardar espaço para um interesse amoroso. No fim das contas, Porter ter atirado em metade da cidade não o impede de nutrir sentimentos calorosos. A premissa, que parte de uma idéia simples, nunca vai a lugar algum. Ela começa com Porter interrogando e intimidando gente para chegar em quem tem seu dinheiro e, aos quinze minutos finais de filme, ainda está fazendo isso. A única coisa que muda é a pessoa interrogada, que vai de um traficante magrelo a um dos chefões do crime organizado no maior estilo de um jogo beat ‘em up dos Anos 90. Tudo isso ao som de uma trilha sonora completamente desimaginativa, que mais parece ser o produto de um estagiário brincando com um banco de melodias e efeitos sonoros.
Tirando alguns momentos raros em que “Payback” mostra originalidade ou qualidade, o resto não impressiona muito. Pelo menos existem cenas e trechos de diálogo — uma resposta de Porter para a prostituta malvada sendo o ponto alto — que sugerem o potencial desperdiçado. É o sucesso de “John Wick” que me faz acreditar neste potencial, pois também parte da idéia simples de vingança e protagonista anti-herói para se tornar um competente filme de ação. Como se tivessem reunido idéias num esboço de roteiro para não esquecê-las e gravado tudo antes de um polimento apropriado, este longa dos Anos 90 é um misto de ruim ou nenhum desenvolvimento. Alternativamente, pode ter existido algo bom estragado pela interferência alheia. Deixarei para descobrir isso um dia — não muito próximo — quando conferir a versão do diretor.
1 comment
Para mim um filme despretensioso, mas mostrou muito mais que um filme de ação. Humor negro, excelentes atuações, suspense, variação de conflitos – ora Porter com membros da máfia outfit ora com corruptos da polícia.
Ação e alívio cômico na medida certa, diálogos bem bolados.
Porter é tão original que vejo muita inspiração para grandes sucessos como John Wick.
Um filme que está longe de ser clichê e muitos não estão prontos para entendê-lo.