Não é de hoje que o Cinema tem obras com forte teor étnico e cultural. 2015 chamou a atenção pelo surgimento da polêmica racial dentro do Oscar, que resultou no maior número de indicações e prêmios dados à pessoas de minoria da história. Os filmes também refletiram a notoriedade do assunto de formas variadas, seguindo as tendências como “Moonlight” ou com a descontraída celebração de sucessos de “Hidden Figures“. No entanto, estes filmes falam sobre o tema de uma certa distância histórica, recordando e glorificando feitos do passado.”In the Heat of the Night”, por outro lado, foi feito na época em que a luta pelos direitos ainda estava pegando fogo, quando revoltas eram frequentes no noticiário e a desigualdade era uma realidade. Felizmente, não abordam o assunto levianamente. Ele é mais do que bem representado pela história tensa e a interpretação emocionalmente carregada de Sidney Poitier.
Quando todas as luzes já se apagaram numa pequena cidade do sul dos Estados Unidos, um homem é encontrado morto em pleno centro da cidade. Despreparada e desacostumada a lidar com coisas do tipo, a polícia caminha em círculos e parte para acusações precipitadas no sinal de qualquer evidência suspeita. Um dos envolvidos nesta bagunça é Virgil Tibbs (Sidney Poitier), um policial negro que estava passagem e se vê obrigado a ajudar pessoas que não querem ser ajudadas ou sequer desejam sua presença ali.
Um dos aspectos interessantes de conferir um clássico depois de anos é ver como ele funciona em novos tempos ao mesmo tempo que se considera o contexto da época. É assim que muitas obras revelam se são um produto limitado de seu tempo e envelhecem mal, ou um reflexo do ser humano que conserva seus significados e temas para a posteridade. “In the Heat of the Night” encaixa-se facilmente neste segundo caso. Tanto é um ótimo filme por si como reflete a questão racial e sua faceta agressiva da época. O longa se sustenta por usar temas raciais na construção de sua história de forma original, explorando-os a fundo sem um tom exploratório e oportunista. É essencial que a cidade seja racista e o protagonista seja negro, e mais ainda que estes elementos sejam executados sem cair no clichê já existente muito antes de qualquer polêmica étnica. Vilanizar um lado e glorificar o outro é tão velho quanto o ato de contar histórias.
Neste aspecto, “In the Heat of the Night” se sai tão bem que é possível dizer que o grande conflito da história não é o assassinato. Muito mais importante é o envolvimento de um policial negro e especialista em homicídios num lugar completamente racista. Lá, a maioria vive com a cabeça na Guerra Civil, nutrindo ódio e amargura ao longo de 100 anos sem poder extravasar como desejado. Isto é, até chegada de um forasteiro enxerido criar a oportunidade perfeita para um acidente infeliz. Tibbs, em contrapartida, não é uma vítima esperando o abate, passivo em relação à forma como o tratam e indefeso às constantes ameaças. Há segurança nele, talvez demais. Ser um ótimo profissional pode ser bom para ele, mas não é exatamente bem visto quando seus parceiros são incompetentes. “In the Heat of the Night caminha no campo das possibilidades para estabelecer tensão. Os personagens sentem, mas se restringem na hora de agir. O suspense cria raízes na expectativa de alguém ceder a seus impulsos. Basta vislumbrar os olhos de Sidney Poitier, frios e cheios de raiva, para ver que ele está tão no limite quanto seus provocadores.
Essas dualidades enriquecem uma história que poderia facilmente cair em clichês e caminhos tendenciosos. Elas evitam que “In the Heat of the Night” seja como fanfics que apresentam uma injustiça social rebatida de uma forma irreal — como uma mulher arrebentando um assediador no meio da rua. Neste caso infeliz, há uma solução simples, surreal e pouco efetiva porque ninguém acredita na conveniência dos fatos. É um dos riscos de escrever uma história sobre si mesmo: corrigir falhas de personalidade e fazer as coisas acontecerem do jeito esperado em vez de seguir a realidade. Quão simples seria colocar o protagonista como o negro imbatível perante os brancos ignorantes? Muito, ainda mais com uma atuação forte de Sidney Poitier para sustentar argumentos a respeito de suas habilidades.
O ator tem presença de cena para justificar quantas características exageradas quiserem atribuir a ele. Policial sério, homem bem resolvido, sempre um passo a frente de seus adversários, sabe a hora certa de falar a coisa certa… Basta uma olhada em sua postura imponente, imune aos problemas de homens menores. Enquanto seria fácil atribuir todas estas qualidades a ele, assim como soa natural pintar Sylvester Stallone como um brutamontes movido à testosterona, preferem dar uma qualidade de sentimentos amargamente reprimidos à expressão penetrante de Sidney Poitier. Junto com Rod Steiger em uma atuação mais exagerada, a dupla protagoniza a desconstrução e esquiva de estereótipos que poderiam ser facilmente escolhidos num filme como esse. Também poderia ser a receita da popular dupla improvável feita de gente supostamente incompatível. Porém é algo mais rico que surge quando um lado tem todos os motivos para retribuir ofensas e o outro para ir na onda dos cidadãos racistas.
Há os que questionam o fato de um negro usar terno e o dito cujo, alguém que rebate agressões tão facilmente quanto elas são entregues. Da mesma forma que o movimento de direitos civis estourou por pressão, Tibbs não tem problema em devolver os murros que recebe e nem pensa no absurdo que isso representa para os racistas. Sua postura é pontual, convicta e totalmente em sintonia com o contexto agressivo ao seu redor, o que torna especialmente interessante ver como o racismo funcionava e era combatido na época. Impetuosidade sem excessos, contudo. Está na medida certa para refletir o radicalismo da época, o que evita a fantasia de histórias pobres.
“In the Heat of the Night” opera no espaço entre consumação e restrição. Na cidade apresentada, a linha entre os dois é bem tênue. Os agressores não escondem seus preconceitos e Virgil Tibbs percebe isso facilmente. Nada é feito de cara, mas resta o medo de que alguma das ameaças se torne verdade. Ao menos nos personagens que importam, nenhuma atitude se apresenta sem um pouco de mistério. Esta ambiguidade sobre certas motivações apenas é prejudicada por uma fala expositiva que confirma algo já presente no subtexto. O racismo cria um ambiente onde a alternativa para a inatividade é o extremismo. Quem estiver fora dos conformes está sujeito a atos radicais. Ver algo assim em paralelo a uma investigação policial envolvendo figuras singulares coloca a discussão racial sob um enfoque único, ainda mais considerando o contexto histórico.