Quando “The Fly” termina, o primeiro crédito que aparece não é nada como “Dirigido por David Cronenberg“. Em vez disso, o texto diz que a mosca foi criada e desenhada por Chris Walas. Não sei qual foi o acordo exatamente para que tenha sido diferente aqui, mas tenho algumas idéias. Todas as vezes que ouvi falar desta obra, sem exceção, focaram especificamente nos efeitos especiais, que trouxeram a criatura do título à vida e a deixaram marcada na mente de todos que a viram. Realmente, é impossível assistir a esse filme e esquecer do que se viu.
Seth Brundle (Jeff Goldblum) está trabalhando em um revolucionário projeto científico: um sistema de teletransporte. Numa festa, ele tenta convencer a jovem jornalista, Veronica (Geena Davis), a conferir seu trabalho e fazer uma matéria sobre ele. A relação se desenvolve para algo mais profundo e Seth faz ainda mais progresso. A invenção funciona perfeitamente, contanto que seja com objetos inanimados. Isto é, até o dia em que o cientista resolve seu problema e transporta um babuíno com sucesso. Ele tenta testar sua invenção em si mesmo, mas os resultados não saem exatamente como ele gostaria.
Tinha pensado em limitar a sinopse o máximo possível para evitar detalhes demais, mas não vejo uma forma de falar de “The Fly” sem comentar sobre o maior atrativo da obra. A própria descrição do IMDb já entrega o jogo, além de que este filme é um remake da obra homônima de 1958 com Vincent Price. Sem mais delongas: quando o protagonista entra em sua máquina de teletransporte, uma mosca entra junto na cabine e dá início a uma mutação terrível nele. Depois de tanta gente comentando sobre os efeitos especiais usados para representar a transformação do cientista numa criatura terrível, é difícil esbarrar neste longa por acaso. A maioria das pessoas — incluindo eu e uns amigos — escolhemos o filme com os efeitos especiais espetaculares em mente.
“The Fly”, junto com “The Thing“, apresentam alguns dos melhores trabalhos com efeitos práticos que vi na vida. Ou seja, maquiagens, próteses, máscaras e combinações dos líquidos mais diversos na composição de criaturas únicas. Ao contrário da computação gráfica, que em raros casos é bem concebida a ponto de não envelhecer mal, efeitos práticos costumam durar. Às vezes eles fazem o espectador desejar que a CGI tivesse sido criada mais cedo, mas não aqui. Uma maquiagem bem feita é imortal. Não há uma textura em baixa resolução depois da remasterização ou problemas de animação. A baba gosmenta existe, o tumor está ali grudado na cara do ator e a combinação destes e outros elementos impressiona. Nunca pensei que deformidades baseados na anatomia de algo ordinário como uma mosca fossem render resultados tão bons. É bem possível olhar para os efeitos e achar nojento ou repugnante. No mínimo, mostra que eles ainda funcionam.
Não vou dizer que esta obra de David Cronenberg supera a de John Carpenter porque esta última tem uma margem infinitamente maior para ser criativa com os efeitos. Nela, a criatura pode ter qualquer aparência em qualquer momento e, normalmente, nem tenta ser modesta nas formas que toma. Não há como competir com justiça quando “The Fly” solta as amarras completamente apenas no final. Menos ainda quando este alto nível é muito mais frequente em “The Thing“. Contudo, essa comparação não tira mérito do longa de Cronenberg, pois até seus efeitos mais simples são chocantes.
A transformação do protagonista é gradual e, ainda que não repita sempre a maravilha visual do final, é explorada pela história como algo mais do que exibicionismo estético. Claro, é muito legal ver como Seth Brundle vai de um ser humano a uma criatura bizarra, uma deformação por vez. Quanto menos o personagem aparece na história, melhor ela fica. Por quê? Depois que o fatídico teleporte acontece, cada aparição de Seth traz uma novidade. Começa com uns sintomas físicos leves, depois escala para algo perto de um super herói distorcido. Incríveis por si, as mudanças físicas não estão sozinhas na ótima exploração da metamorfose. Faço a comparação com heróis porque filmes do tipo, especialmente as estréias, mostram o personagem principal adquirindo seus poderes de alguma forma, descobrindo-os e depois aprendendo a usá-los. Não digo que chega longe a ponto do cientista se acostumar com sua novas capacidades e usá-las como quer. São diferentes tipos de história. “The Fly” vai até mais ou menos a metade do caminho e trabalha especialmente bem a parte da descoberta de novas capacidades. Afinal de contas, é uma mutação descontrolada com mudanças quase diárias.
Essa série de novidades também é bem representada pela ótima escolha de Jeff Goldblum como o protagonista da história. Assim como seu físico ganha pelos, força ou energia, o personagem também muda. Ele começa como um daqueles caras estranhos que não funciona direito em ocasiões com gente, sem um repertório de habilidades sociais amplo o bastante para parecer normal numa conversa. Fiquei impressionando porque ele não tinha nada a ver com sua contraparte extrovertida e espaçosa de “Jurassic Park“, nenhum traço de similaridade entre um cientista rato de laboratório e um topetudo entendido de dinossauros. Não no início, pelo menos; mais tarde, quem sabe. Goldblum impressiona no começo e depois mais uma vez quando seu personagem muda por decorrência de sua transformação em monstro. Chega a lembrar aquelas pessoas que passam anos com auto estima baixa, abatidos por não terem o físico desejado, e depois tornam-se os maiores arrogantes quando entram em forma. O moleque de aparelho com acne que fica bonito quando adulto, o gordo que emagrece e fica forte. Os exemplos são vários, e Goldblum representa essa transição muito bem. São praticamente dois papéis num mesmo filme.
É muito mais do que eu posso dizer de Geena Davis, por outro lado. Enquanto seu colega está totalmente imerso no papel de protagonista, ela está justamente no pólo oposto: atuando de forma desconectada. Havia escrito na primeira vez que vi esse filme que sua interpretação foi mecânica e pouco espontânea, que ela até parecia dopada em vez de responder com naturalidade. Posso até ter acreditado nisso num primeiro momento, hoje já acho que sua interpretação não é sem emoção e suas falas ditas com um leve atraso. O problema é que perto de Goldblum, fica ainda mais evidente a diferença de postura entre as atuações: na verdade ela está levando o papel a sério demais, perdendo no meio do caminho um senso de humor que está enraizado na atuação de seu parceiro de cena e também na direção de Cronenberg. Há um quê de galhofa com humor negro ali, como se todos soubessem quão absurdo é a situação inteira e às vezes deixassem passar uma pista disso, embora mantenham seus personagens sólidos e sem quebras.
Há também um problema na edição — ou melhor, pequenos probleminhas — que incomoda por falta de fluidez nos cortes, mas não chega a ser um grande distrativo em “The Fly”. O filme acerta mais nos elementos de maior impacto: história, sucintez, atuação do protagonista e, especialmente neste caso, efeitos especiais. A audiência é apresentada a uma experiência sobre transformação, uma que conta com o admirável acerto de combinar desenvolvimento de personagem com estética visual.