Josef von Sternberg, é um cineasta famoso por seu pique durante os Anos 30 e por seu trabalho com Marlene Dietrich. “Anatahan” foi seu último filme. Não o último lançado, pois “Jet Pilot” ainda saiu anos mais tarde, mas foi sua última produção antes de passar o resto da vida dando aulas na Universidade da Califórnia em Los Angeles. Ironicamente, é o primeiro filme seu que vejo. Até ontem, meu único contato com seu trabalho era meu interesse por “The Blue Angel”, recomendado por um amigo há mais tempo do que consigo lembrar. Hoje, só me resta a esperança de que esta recomendação seja melhor que “Anatahan” foi.
Depois de um bombardeio, soldados japoneses se refugiam em Anatahan, uma pedaço de terra pertencente ao conjunto das Ilhas Marianas. Nela, apenas uma mulher e um homem vivem, mais ninguém. Sem ter como fugir, resta a eles adequar-se à vida simples no meio do nada. Aos poucos, modos antigos se perdem em um processo que tira até mesmo honra e civilidade de alguns. Amizade e camaradagem cedem lugar à disputas de poder e traições. No meio do oceano, o mundo simplesmente não é o mesmo.
“Anatahan” é um filme curioso para seu tempo. Em 1953, o Sistema de Estúdio ainda era vigente. Todos os processos cinematográficos eram, no mínimo, supervisionados pelos grandes estúdio. Normalmente, eram controlados diretamente. Isso significa que o processo inteiro de idealizar, fazer e distribuir um filme estava nas mãos dos engravatados. Nada escapava. Escolhas de roteiro, contratação de equipe e até que cinemas passariam quais filmes e quando. Tudo era parte de um sistema tão regulado, que era quase fabril. Artistas e técnicos chegavam a ser comparados com operários de fábrica por não terem autonomia alguma. No entanto, Josef von Sternberg lançou este longa com um nível de controle absurdo para os padrões da época. Ele dirigiu, escreveu, fotografou e narrou a obra. Foi uma manobra subversiva que só poderia ter acontecido fora do país, o que leva ao fato deste longa ser, essencialmente, japonês. A produção é do Japão e foi gravada lá, além de contar com vários japoneses na equipe. A narração, no entanto, é em inglês. Isso torna a obra mais acessível, ainda que não melhor por este motivo.
Ainda assim, foi um fracasso de bilheteria nos Estados Unidos e, se for pelos motivos que tenho em mente, deve ter ficado bem claro o porquê. “Anatahan” é um filme japonês em todos os sentidos, exceto pela voz de Sternberg narrando os fatos. Todos eles, sem exceção. Este é um dos piores usos de narração que vi na vida. Praticamente todos os livros de cinema que tocam no assunto, mencionam que excessos de narração são sempre prejudiciais. Pode ser um excesso de detalhes, como quando o narrador descreve ações e objetos já representados pelas imagens; ou um excesso de presença, pela voz aparecer vezes demais durante a obra. Ou então pode ser os dois, como é o caso aqui. Pensei em dizer que é uma técnica desnecessária, mas estaria errado porque é ela que conta a história. Pelo diálogo ser raro em comparação com a voz onipresente, acredito que nem legendas serviriam de muito — embora tenha ficado curioso por como a obra ficaria.
Da forma como é apresentado, “Anatahan” é o desperdício de uma história boa. Talvez o fato de Sternberg ter tanto controle tenha sido um fator grande nisso, talvez tenha faltado uma outra voz para sugerir algumas mudanças. Quem sabe a obra não tivesse saído diferente, sem uma voz descrevendo o óbvio e o subliminar, das ações concretas ao sub-texto da cena. Isso estraga muito a experiência. Dá a impressão de que este é um documentário propagandista do período de guerras, com a eterna presença do narrador sobre as imagens. Longe de ser um complemento, como idealmente seria, a técnica é aplicada de forma preguiçosa e excessiva. Não há nada de genial, inovador ou minimamente decente em fazer um filme em japonês e contar a história inteira através do áudio.
Digo que é um desperdício de história porque o enredo de “Anatahan” é forte. Dá para notar que o conteúdo da trama tinha potencial para ser muito mais. O conto de soldados presos numa ilha no meio da guerra já rende muito material — foi em termos parecidos que nasceu “Lost”. Eles ficarem anos presos sem saber que a guerra já havia acabado é só um dos detalhes incríveis que este longa reserva mais além. Fatos absurdos, porém reais, abrangem temas diversos e ricos, da descivilização do homem ao patriotismo cego. É impressionante ver que o elenco ostenta competência na representação da passagem do homem para um estágio primitivo da existência. As atitudes dos soldados mudam, o brilho nos seus olhos muda. Quando eles chegam na ilha, agem como pessoas que visitam a casa de um estranho. São comedidos, educados e prestam muita atenção onde pisam. Perto do fim, um Neandertal se sentiria em casa. Uma mulher linda estar inserida nesse contexto só torna tudo ainda mais complexo e interessante. Já não é mais uma história de sobrevivência por si, há uma tentação constante sobre cada um dos envolvidos. De certa forma, é como ir para a cadeia: os hormônios sexuais e a libido enlouquecem. Só que dessa vez, a mulher que normalmente aparece em pôsteres na parede está ali, em pessoa— e até suscetível, na visão de homens semi-selvagens.
Foram estes acertos que me fizeram ficar interessado por “Anatahan”. Não é à toa também. Já é incrível o bastante saber que teve gente que ainda lutava a Segunda Guerra nos Anos 50 quando o Eixo já havia se rendido. Os refugiados ainda achavam que Hiroshima e Nagasaki eram apenas nomes de cidades japonesas. Tudo isso, em conjunto com o homem perdendo sua civilidade, pode ser encarado como uma crítica ao patriotismo. O ato de lutar por um país ou um ideal com ferro e fogo sendo a cegueira de uma pessoa e tornando-a um primitivo idiota. No entanto, toda essas conquistas possuem seu lado lamentável por não serem aproveitadas do jeito que mereciam. Créditos a uma direção medíocre por este feito.