Há uns anos atrás, analisei “Meu Amigo Totoro” e fiquei impressionado com a sinceridade da obra com seus temas. É indubitavelmente um filme infantil e, mesmo assim, não subestima seu público com uma história imbecilizada. Um adulto notará o humor bobinho e o ponto de vista infantil, mas dificilmente julgará a obra como menos por este motivo. Ela deixa suas intenções claras e se mantém fiel à proposta, executando-a solidamente na sequência. “A Viagem de Chihiro” segue um caminho similar e até vai mais longe: é uma história mais ambiciosa e complexa, que mistura criatividade visual com uma variedade de temas tão rica quanto.
Chihiro está se mudando para uma cidade longe de seus amigos e de sua escola, para sua infelicidade. Indo para o novo lar, seus pais erram o caminho e se encontram num parque de diversões antigo. Lá, eles descobrem que algumas coisas ainda estão funcionando e se acomodam numa barraca de comida. Chihiro sai para explorar o lugar e vê que há mais naquele lugar do que aparenta. Seus pais são transformados em porcos, espíritos rondam pelo lugar e a garota não faz idéia de como fugir.
É um pouco estranho abraçar a proposta de “A Viagem de Chihiro” inicialmente. De uma hora para outra, o mundo real se torna um lugar de vultos, espíritos e criaturas bizarras. A garota, assim como o espectador, não entende nada. De onde tantos monstros surgiram e o que aconteceu com a lógica? Não importa, a graça é justamente estar ignorante aos segredos daquele mundo e conhecê-los aos poucos. Esta não é uma experiência para ficar pensando e teorizando enquanto as coisas acontecem. Render-se à criatividade infinita é impressionar-se a cada poucos momentos, pois não há limites para as maravilhas desta animação. Seja nos visuais ou nas reviravoltas constantes da trama, não há espaço para tédio. Ambicioso e abrangente, este filme não deixa a audiência desviar a atenção porque não há nada como ele.
Onde mais pode-se ver uma casa de banho cheia de gente deformada, sapos falantes e feiticeiras cabeçudas? Visualmente, posso dizer com segurança que esta é a animação em 2D mais bonita que já vi. O nível de detalhe é simplesmente absurdo. Ou melhor dizendo, não é tão absurdo assim, tratando de um filme de Fantasia. Não existe limite para o possível, tudo pode acontecer a qualquer momento sem o perigo de ir longe demais. Uma gigante gosma fedorenta, avatar da imundície e da sujeira, não é algo para se estranhar quando cabeças saltitantes e um bebê gigante estão na área; ou um homem elástico de quatro braços e o pelotão de ouriços que trabalha para ele. São curvas incomuns, figuras deformados e cores chamativas em harmonia. Nada fica abaixo do sensacional e, mesmo assim, os visuais não são a melhor parte de “A Viagem de Chihiro”.
Olhando por cima, “A Viagem de Chihiro” é uma aventura singular feita do material de sonhos. Sonhos japoneses, a propósito, pois muitas das figuras são extraídas direto da cultura e folclore nipônicos. Detalhes como estes somam para a qualidade destemida desta animação. Ela não tem medo de explorar o universo que cria. Visualmente, isso acontece tão frequentemente quanto cada monstro novo que aparece. Já na história, não é menos impressionante ver que cada uma daquelas criaturas não está lá para um gozo estético. Cada uma tem função e impacto na história, por mínimo que seja. Tudo é construído a fim de causar no espectador um sentimento de maravilha e espanto tão forte quanto em Chihiro. Originalidade traz imprevisibilidade. Sem ter a mínima idéia do que está por vir, cada virada tem efeito total. A série de desventuras e trapalhadas da protagonista ganha um atrativo a mais porque em cada corredor novo o espectador conhece um pouco mais daquele mundo.
Esta aventura é como “Alice no País das Maravilhas”, “O Mágico de Oz”, talvez até um pouco de “Divertida Mente” e nenhuma delas ao mesmo tempo. Sim, é a aventura de uma garotinha num novo mundo cheio de novidades e bizarrices; é também uma história de amadurecimento e revisão de princípios, valores e verdades pessoais. Mas a abordagem é tão única que não há como traçar um paralelo íntimo com nenhuma das três. Em termos de trama, é mais próximo dos dois primeiros; em termos de temática, do terceiro. O que seria esse desbravamento de um novo horizonte se não o crescimento da própria Chihiro? Ela começa a história sem gostar da idéia de mudar de casa e é subitamente arremessada num lugar centenas de vezes mais chocante que morar numa cidade nova. Neste lugar, ela encontra um espectro sem face com uma voracidade nunca vista; gêmeas com lados opostos; gente idêntica aos montes; espíritos simbolizando valores humanos, entre outros. A beleza definitivamente é secundária perto do significado de cada criatura extravagante. A protagonista descobre em cada um destes um pedaço do mundo que a aguarda. A partida da juventude traz uma mudança significativa: o que antes era uma exploração descompromissada de novidades, agora é amedrontadora. Ser adolescente é redescobrir-se como pessoa, filtrar traços de personalidade e, por fim, descobrir sua identidade. Um bebê gigante? O adulto que nunca cresceu, imaturo. Gêmeas curiosamente diferentes? A prova de que existem dois lados nas coisas tomadas como verdades absolutas. Tanta riqueza semântica não vem de graça. É por causa dela que “A Viagem de Chihiro” não é um safari visual sem substância, existem interpretações ricas aguardando para serem encontradas aqui.
Nenhuma experiência minha com a Ghibli foi negativa, mas nenhuma foi positiva como “A Viagem de Chihiro”. Lembro até hoje que vi este filme em cartaz sem muita empolgação quando era mais novo. Nem considerava ver um desenho bobinho quando algum outro blockbuster estúpido estava passando. Talvez tenha sido para melhor. Não sei se teria conseguido extrair a interpretação sobre maturidade e desenvolvimento pessoal que encontrei quase 15 anos mais tarde. Um inesperado festival para os olhos e para o coração, um grande filme que me pegou de surpresa.