O que dizer de um filme mudo lançado depois do fim cinema mudo? “City Lights” foi o primeiro trabalho de Chaplin depois de “O Cantor de Jazz” estourar nas telas acompanhado das vozes de seus atores. Seria este o tiro no pé de um artista que não conseguiu acompanhar a evolução do cinema? Com certeza não. No máximo, mostra um apego de Charlie Chaplin pelo estilo que o trouxe tanto sucesso e, mais importante, é a prova que o cinema mudo bem executado não deve nada à sua contraparte falada. Um dos melhores de Chaplin e até hoje entretenimento de muito bom gosto.
Em meio à loucura urbana, um andarilho (Charles Chaplin) encontra por acidente uma linda vendedora de flores (Virginia Cherrill) e se apaixona por ela. Ele não percebe de cara que ela é cega, mas não demora para descobrir que ela tem enfrentado dificuldades financeiras. Entra em cena um milionário excêntrico (Harry Myers) com tendências melancólicas, que logo se torna amigo do andarilho. Esses encontros frequentemente enchem os bolsos do rapaz pobre e trazem a oportunidade perfeita para ajudar a garota cega, mas a situação não é tão simples assim: o milionário só lembra-se de sua nova amizade quando está embriagado.
Devo admitir que, com exceção de “Tempos Modernos” e sua clara alegoria ao mundo capitalista, não enxergo em muitos filmes de Chaplin um comentário social tão forte como frequentemente é apontado. O personagem do andarilho — o Carlitos, em português — até pode ser considerado como um atestado vivo sobre humanidade: sua pobreza e roupas arrebentadas nada têm a ver com seu bom coração. No entanto, a trama de “The Gold Rush“, por exemplo, não faz lá um comentário social muito pungente, servindo mais como uma grande piada sobre a busca desenfreada pelo ouro ocorrida décadas antes — a Corrida do Ouro na Califórnia sendo um grande exemplo, durando de 1848 a 1855. “City Lights” não segue nesse caminho e mostra que tem algo a dizer sobre a vida na cidade. Sutilmente, comicamente e de forma duradoura mais de 85 anos depois de seu lançamento.
A princípio, pensei que “City Lights” seria outro filme engraçadinho de Chaplin, uma comédia física executada por um dos melhores no ramo. No entanto, fiquei surpreso e até me diverti mais ao enxergar reflexos de coisas que vejo em 2017 num filme de 1931. A sociedade e a cultura mudaram? Sem sombra de dúvida. Assim como mitos milenares ainda guardam verdades que podem ser aplicadas atualmente, Chaplin brincando de ser granfino tem um potencial para risadas tão grande quanto suas críticas sociais. Aliás, a fidedignidade torna o humor até mais eficiente, pois tira o espectador um pouco daquele universo cartunesco e o aproxima de sua própria realidade. Ao se tornar amigo do milionário tão excêntrico quanto embriagado, o andarilho passa a viver a vida à qual o primeiro está acostumado: vestir ternos caros e ir até os bares mais elegantes andando de Rolls Royce. Um avanço para alguém que estava acostumado a dormir na rua e um desafio, de certa forma, pois ele não tem a mínima idéia do que está fazendo. Ele já é naturalmente atrapalhado e desastrado, o ambiente chique não muda essa situação e até piora. Além de tentar agir como uma pessoa normal, que não esbarra nas coisas e causa um caos ingenuamente, ele tem de entrar nos moldes da alta sociedade: fumar charutos, portar-se bem à mesa e manter a postura ereta.
É claro que as coisas dão errado. Hilariamente errado. O andarilho está tão fora de seu mundo que não há como não lembrar das pessoas que gostam de se colocar numa posição mais alta que aquela que ocupam. A pessoa sabe muito bem o salário que ganha e ainda insiste em dizer a todos quão sofisticada ela é, quais roupas ela usa e onde ela janta toda semana. Não entro em méritos de hierarquia social porque acho isso uma grande bobagem, refiro-me justamente às pessoas que acreditam em algo assim e, pior, consideram isso significativo. Para eles, é mais importante passar a impressão de que possuem um estilo de vida sofisticado do que de fato fazer algo para chegar lá; é uma vida empenhada na manutenção das aparências. Ver Chaplin tentando e falhando fumar um charuto é cômico, pois é muito claro que ele acha que é apenas um cigarro gigante. De seu jeito atrapalhado, ele faz um esforço absurdo para parecer normal enquanto come um prato de macarrão, refletindo bem os que tentam sair de sua vida de sempre em prol da ostentação vazia. “City Lights” aproveita perfeitamente cada uma dessas dificuldades para entregar o humor inteligente já era esperado desde o começo; sempre aliando isso a algo mais, Charles Chaplin dá ainda mais motivos para seu clássico personagem continuar sendo amado ao longo dos anos. O andarilho ser desastrado dá origem a inúmeras sequências genuinamente engraçadas sem esquecer daquela fagulha de drama, de humanidade, de seu personagem para tornar a comédia algo mais do que uma risada ocasional de um mundo construído em torno do humor. Assim como em “The Kid“, os momentos de emoção trazem a profundidade que torna “Carlitos” tão icônico: ele é tão sincero em suas trapalhadas quanto em seu sorriso acanhado.
A chegada do cinema falado abalou um pouco a confiança do artista na época do lançamento, mas acabou confirmando sua esperança quanto ao filme ser elogiado por sua qualidade em vez de sua tecnologia. Hoje, “City Lights” continua sendo reconhecido como um de seus maiores trabalhos. Engraçado, relevante e tecnicamente sublime por não precisar de todos os recursos cinematográficos para contar uma boa história. Quem precisa de som e diálogos quando o diretor domina a expressão dos corpos?