Colocar John Huston e Humphrey Bogart na mesma frase é pensar em “O Falcão Maltês“. Um dos mais clássicos Noir não poderia ficar de fora sendo um marco tão importante na carreira dos dois artistas. Para Huston, foi uma gigantesca direção de estréia e, para Bogart, um sucesso que alavancou sua carreira e fortaleceu sua parceria com o diretor. “The Treasure of the Sierra Madre” saiu sete anos depois de tudo isso e já foi a terceira colaboração entre os dois, não sendo menos lembrada como um dos melhores filmes da dupla por isso. Se a premissa e os grandes nomes no elenco não forem atraentes, há sempre uma qualidade para ser vista em Bogart, que surpreende por sua versatilidade a cada filme seu que vejo.
Dobbs (Humphrey Bogart) está sujo, cansado e sem um tostão no bolso. Não há trabalho para gringos em Tampico, cidadezinha do México, e não há como sair dali sem dinheiro para voltar à América. Ele passa por albergues pulguentos e pela mão de trapaceiros até que encontra uma oportunidade de dar a volta por cima. Howard (Walter Huston) tenta Dobbs e Curtin (Tim Holt) para buscar veias de ouro nas montanhas e fazer suas fortunas. Há perigos naturais, um clima inóspito e bandidos, mas a ameaça mais perigosa logo se revela como a ganância do homem.
Em certo momento da história, Curtin diz: “Sabe, o pior não é tão ruim quando finalmente acontece. Não tão ruim quanto você acha que será antes de acontecer”. Em outra fala acidentalmente consciente, o personagem fala sobre uma situação peculiar que notei em “The Treasure of the Sierra Madre”. Fica bem claro desde o começo, seja explicitamente ou sutilmente, que a ambição é um tema grande na história; eventualmente alguém seria envenenado pelo ouro e trocaria seus próprios valores pela chance de ficar um pouco mais rico. É aí que entra uma parte do roteiro que não funcionou tão bem para mim: espalham tantos sinais que as coisas darão errado que, quando o processo de fato começa, já não é a mesma coisa. Um personagem esbarra num maço de dinheiro e, enquanto conta o dinheiro que lhe era devido, dá a breve pausa de quem considerou pegar um pouco mais. Apenas um dos vários sinais do que estava por vir. Eu estava estranhando o filme anunciar tão insistentemente algo que já seria explorado a fundo pela própria trama. Pior, chega a ser uma oportunidade perdida porque essa insistência é acompanhada de competência. Haviam passado a mensagem claramente sem apelar para a exposição, até que o que veio depois, nunca chegando a ser tão impactante, me deu a idéia de que este longa havia entregado o jogo cedo demais.
Então as palavras de Curtin fizeram todo o sentido. Por um bom tempo eu achei que “The Treasure of the Sierra Madre” seria mais um clássico superestimado — e talvez ainda seja, só não tanto — porém eu logo encontrei a verdadeira jóia da obra: a atuação de Humphrey Bogart. Está virando rotina elogiá-lo em todo filme seu que vejo, mas não é por hábito que faço isso, é por merecimento. Em uma interpretação que o leva do vira-lata ao paranóico, Bogart ostenta sua flexibilidade sem esforço aparente. Quem mais consegue ser suave enquanto incorpora a loucura? Logo fica claro que o ponto alto deste filme nunca foi trazer a corrupção de seus personagens como o foco, e sim como ela abre as portas para uma grande atuação. O roteiro de John Huston, premiado com o Oscar, extrai as melhores qualidades do ator por meio de um personagem complexo. Seu trajeto não é sutil e cheio de nuances, que desenvolvem sua personalidade gradativamente até chegar num estágio novo e completamente diferente do inicial; ele chega lá de uma hora para outra e deixa a audiência num estado de descrença, surpresa até. Como ele pode estar desse jeito tão rápido? Seria a oportunidade perfeita para uma crítica dura ao desenvolvimento do personagem, isto é, se o ator responsável não fizesse surpresa se transformar em maravilha com um trabalho crível como esse.
Se, por um lado, o roteiro tem um trecho em que parece seguir um caminho relativamente óbvio, todo o resto traz sequências muito bem pensadas. Antes de eu pensar em dizer que a história havia estacionado conforme a corrupção nascia entre os companheiros — o que também prejudicou ritmo — algumas cenas apresentavam essa sequência de desconfianças com a mesma precisão da cena da contagem de dinheiro. Os três homens aproveitam uma noite de sono quando um deles acorda e nota que o outro não está lá. Já é o bastante para levar outro homem em busca do que está ausente. Então só o primeiro volta. Será que o segundo saiu por preocupação ou ambição? O desenvolvimento dessas suspeitas pode até não ser dos melhores em termos de enredo, mas estaria mentindo se disse que não plantam bem a semente da discórdia aqui. Aliás, parte do problema é justamente o que vem depois não estar à altura da introdução. Sobra para os dois últimos atos retomarem o nível de qualidade do começo com os três atores em seus melhores momentos e até um irônico final que foi ressoar 21 anos mais tarde em “The Wild Bunch“. Justamente a imagem que ficou marcada em minha mente do Faroeste de Sam Peckinpah saiu diretamente de “The Treasure of the Sierra Madre”.
Só posso dizer que não gostei da direção de John Huston, infelizmente. Ela também foi premiada com um Oscar, mas o trabalho de câmera não está a par das qualidades do roteiro. Com o Código Hays vigente, certas cenas explícitas deveriam ser cortadas ou exibidas subliminarmente. No entanto, Huston não mostra a sutileza vista em muitos Noir, a morte vista fora de câmera e mostra apenas o bastante para passar a mensagem; é pior até, minha insatisfação está relacionada a “The Treasure of the Sierra Madre” como um todo. Talvez seja um ponto fora da curva em sua carreira, pois até cenas mais comuns sofrem dessa falha na narrativa visual. Uma briga do começo do filme está facilmente entre as piores troca de murros que já vi no cinema clássico ou no contemporâneo, com um resultado que só poderia ser resultado de má direção. Não consigo imaginar que um improviso poderia sair neste nível de barbaridade, afinal todo mundo tem uma noção de como dar uns socos. Certamente não tem nada a ver com abraçar as pernas de quem você quer bater, de qualquer forma. Tiroteios deixam a desejar no uso de geografia e até cenas mais simples reciclam tomadas. Depois de um tempo gravando no México e um orçamento descontrolado, a Warner Bros. mandou todos voltarem para a América. Isso fica especialmente notável quando os ambientes, antes variados, são trocados por cenas gravadas no mesmo cenário sob o mesmo ângulo de câmera — um set de estúdio, nada como uma montanha escaldante em Tampico.
Houve duas grandes surpresas com “The Treasure of the Sierra Madre”: a primeira foi negativa, achei que a historia deixou de impressionar depois de introduzir a ganância como uma ameaça iminente; a segunda já foi muito melhor, pois vi que o resultado desse desenvolvimento morno foi Bogart em uma interpretação surpreendente. Não é sempre que um ator transcende os defeitos de um roteiro. Normalmente atuação e personagem estão tão ligados que os defeitos de um interferem no outro. Todavia, não é como se o roteiro fosse ruim, ou perto disso, suas qualidades superam seus defeitos de longe. É um excelente filme, por mais que não seja o tal marco na história do cinema americano. A não ser que o fato de pai e filho ganharem Oscars for considerado, aí realmente é um acontecimento curioso.