Não é hoje nem tão cedo que alguém irá me convencer de que o maior combustível para o Cinema — e talvez para a arte em geral — é algo diferente do comportamento humano. Em outras palavras, poderia dizer que as possibilidades ridiculamente vastas da psique humana alimentam desde a inspiração até a execução e eventual comoção da audiência. “As Good as it Gets” prova isso novamente de uma forma um tanto literal, dessa vez: usando uma condição psicológica como plano de fundo para uma atuação estupenda e um roteiro que sabe aproveitá-la ao máximo.
Dentre as pessoas esquisitas, Melvin Ugall (Jack Nicholson) reina absoluto. Poucos, talvez ninguém, o superam na arte de ser desagradável quando ele tem tantas manias, rituais e uma personalidade que não parecem ter sido feitas com a sociabilidade em mente. Por isso, ele mesmo prefere não entrar em contato com outras pessoas para não ter que esquentar sua cabeça nem a delas. Quanto menos elas interferirem em sua vida, melhor. No entanto, a vida não funciona dessa forma e uma hora ou outra ele tem de interagir. Uma dessas vítimas é Carol (Helen Hunt), uma garçonete esgotada por tudo que a vida exige dela e que começa a conhecer Melvin melhor para sua profunda, e meio infeliz, surpresa.
Esbarrava neste filme várias vezes ao abrir a página de Jack Nicholson no IMDb para lembrar os Oscars que ele ganhou; talvez o único motivo por trás de meu interesse por “As Good As It Gets”, pois de resto nunca ouvi ninguém tirar um momento para falar bem dele. O que também não quer dizer que falaram mal, no geral esta é uma obra que passa despercebida talvez por seu estilo “Sessão da Tarde”: história leve e bem humorada, experiência fácil de digerir. Mas por trás dessa mesma simplicidade há um cinema de qualidade que foge da maioria dos clichês ao apostar na improbabilidade. Como assim? Praticamente toda e qualquer coisa aqui não parece se encaixar num padrão socialmente aceitável. O diálogo que todo cliente tem com sua garçonete passa tão longe quanto possível de um pedido e um possível flerte, caminhando pelas terras onde as respostas inesperadas não são espertinhas que tornam a conversa interessante, mas aquelas que fazem a outra pessoa sair de fininho enquanto tenta esconder o constrangimento.
“As Good As It Gets” é, em alguns sentidos, um filme um tanto não convencional. Muitas histórias apresentam seus roteiros num modelo que escala os conflitos da trama até um ponto sem retorno, um clímax. A situação complica-se gradativamente, cada vez adicionando um novo obstáculo, literal ou mental, que desenvolve o protagonista e finalmente exige dele um esforço maior do que ele enfrentou até então. Aqui este conceito é aplicado de uma forma um pouco diferente. Em vez de conflitos, o roteiro impressiona por escalar o nível de vergonha alheia das relações entre os personagens a níveis que surpreendem por sua originalidade a cada nova sequência. Sem repetir táticas velhas, sem apelar para os clichês. Quando Melvin parece não ter mais nenhum tipo de comentário esquisito para fazer, ele arranja um jeito completamente novo de deixar as outras pessoas sem chão e a audiência aos risos; tornando pouquíssimos os momentos ordinários sem ao menos um chamativo. É sinceramente difícil não esboçar pelo menos um sorriso com tantas situações do tipo “Isso aconteceu mesmo?”, este é um filme tão simpático e bem humorado que nem os momentos mais bobos deixam de impressionar, não quando o elenco possibilita tantas trocas de palavras com resultados sempre excelentes.
Mas o roteiro só pode ir tão longe. Quando o plano de fundo está montado, é preciso de atores para dar vida às palavras no texto. Melvin tem uma condição frequentemente marginalizada pelo senso comum, ele é uma pessoa obsessivo-compulsiva, aquela que tem rituais exageradamente rígidos para quase tudo em sua vida. Para almoçar ele leva talheres de plástico; lavar as mãos significa usar água fervendo e pelo menos dois blocos de sabonete; na rua, ele não encosta em ninguém e não pisa na divisória do concreto. É muito mais que o que falam por aí — ser detalhista não é ter “TOC” — o protagonista é realmente escravo das próprias regras e, para ajudar, é um tremendo cretino. Um cretino interpretado por Jack Nicholson em uma de suas melhores performances de sua carreira. Ele é um ator que fala com muita propriedade, seja lá qual for o papel ou o discurso. Ele pode estar falando a maior besteira do mundo ou sendo tão escroto quanto possível, é simplesmente impossível não se sentir envolvido pela aura de segurança que ele transmite. Então ele traz à mesa alguém com uma condição psicológica peculiar e a coloca em ação solidamente, não tão diferente do que Dustin Hoffman fez no também excelente “Rain Man“. Ambos acompanham incríveis personagens em atuações ainda mais incríveis, dignas de entrar para a história do cinema. Se existe algo em que “As Good As It Gets” não erra, é no elenco.
Os esforços de Nicholson não ficam muito atrás dos de Hoffman. Interpretar alguém que não só tem um repertório infinito de comportamentos — de leves tiques a indelicadas demonstrações de desinteresse quando ele desvia o olhar e bota a mão no rosto — mas é tão recursivo quanto em seu vocabulário grosseiro é sempre algo digno de nota, qualidade que a Academia felizmente notou ao dar ao ator seu terceiro Oscar. Já do lado mais dramático de “As Good As It Gets” está Helen Hunt em um papel aparentemente desprezível, mas que ganha muito espaço muito rápido dentro da história. Antes apenas uma garçonete cheia de problemas, depois uma mulher de personalidade que nunca despreza a identidade de sua personagem em prol de um clichê. Por trás disso? Um figurino que sabe muito bem como está caracterizando a atriz. Hunt está em ótima forma física, bonita e atraente, sem nunca deixar isso definir sua personagem, o resto dos traços todos formam um natural contraste com sua aparência. Ela não sabe escrever direito, tem certa dificuldade para soletrar algumas palavras e claramente não está acostumada a ser normal. Para ela a vida é trabalhar como garçonete e torcer para a situação não piorar ainda mais. Ela e seus dilemas trazem o drama como contribuição, que cria uma riqueza de entonação em uma obra voltada para a Comédia e, curiosamente, não a deixa de fora das risadas, sendo um dos elementos cruciais para colocar o protagonista de Nicholson contra a parede e tirar dele as atitudes mais estranhas.
Meu único porém em relação a “As Good As It Gets” é sua tendência por vezes artificial de tentar fazer as coisas darem certo demais. Não tenho certeza do quanto isso me incomodou ao certo, pois é um detalhe que não afeta pontualmente nenhum trecho do filme especificamente. No mais, interpretações incríveis injetam personagens curiosos com originalidade o bastante para fazer a audiência esquecer de um deslize como esse.