Cada vez mais me parece que o caminho para ser cineasta não é tão direto ao ponto como a maioria das profissões, diferente de fazer um curso de Medicina e entrar no mercado como um médico. Tornar-se um artista não é uma questão de entrar numa faculdade e sair com os dons de um diretor, estando mais para uma questão de vocação, sorte e competência. Tom Ford, diretor e roteirista de “Nocturnal Animals”, começou sua carreira como arquiteto, eventualmente tornando-se estilista para marcas famosas e criando sua própria marca em 2006. No mesmo período, Ford fundou sua própria produtora e lançou seu primeiro trabalho:”A Single Man”. Como alguém percorre um caminho tão sinuoso e acaba lançando um filme favorito para o Oscar? Talvez com vocação, sorte e competência.
Indo além de uma simples narrativa, esta obra conta duas histórias ao mesmo tempo, ambas ligadas pelos mesmos sentimentos de desolação e pesar de seus personagens. O primeiro arco acompanha Susan Morrow (Amy Adams), a dona de uma galeria de arte, e seu momento de crise existencial. Ela tem tudo na vida, mas a infame depressão sempre dá um jeito de aparecer, justo quando uma encomenda estranha chega no correio. Seu ex-marido de quase 20 anos antes escreveu um livro e mandou para ela o rascunho. Ele conta o outro arco de história aqui, sobre um homem que encontra problemas numa viagem em família pelo interior do Texas. Aos poucos, Susan se vê cada vez mais imersa no livro e sua própria carga de subtexto.
Por mais que “Nocturnal Animals” não seja uma obra-prima ou seja um candidato forte a Melhor Filme no Oscar, acredito que o trajeto do diretor Tom Ford tenha uma ou coisa ou duas a dizer sobre o ofício do cinema. Seria estranho e até incoerente se a parte visual — especificamente o figurino — deixasse a desejar aqui. Ford tem um grande histórico como estilista, como citado, mas não se deixa levar por sua tendência profissional. As roupas de fato trazem consigo um ar de bom gosto quase inegável e, mais importante, participam da construção de personagem como mais do que um acessório estético. Diferente de Nicolas Winding Refn, que busca cenas bonitas e frenquentemente se perde nessa busca pela beleza, Ford apresenta imagens belas e com significado; em especial quando se trata do trajeto da protagonista de Amy Adams. Em uma crise de sentimentos negativos, ela reflete sobre sua vida farta de prazeres vazios e lembra-se de quando era mais jovem, mais impetuosa e estúpida. Ela casou nesse período, era uma pessoa completamente diferente.
Adams não está sozinha nesta tarefa de interpretar duas vidas tão distantes. Sua atuação, com certeza entre os pontos mais altos em “Nocturnal Animals”, captura num mesmo filme a natureza desafiadora de uma jovem com alguma coisa a provar e a congregação de arrependimentos de uma mulher madura que fez as escolhas erradas na vida. A maquiagem dá a feição jovial à atriz, já suas roupas e penteado mostram-se em sintonia ao diferenciar uma fase da vida da outra. De um lado, as roupas caríssimas de alguém que já ganhou a vida sem vencer nela, uma face ajeitada para um interior flagelado. De outro, uma personalidade ardente por mudança, desejando não ser sua mãe materialista e pragmática; a simplicidade de seu vestuário reflete sua maior preocupação com ideais e sonhos sobre estabilidade e aparências. Amy Adams alia performances opostas às ferramentas técnicas ao seu dispor; o talento de um diretor que entende o impacto de uma imagem com uma atriz que dá substância às camadas externas.
Outro grande chamariz é contar duas histórias paralelamente enquanto uma outra, maior e mais profunda, se desenvolve ao fundo. O livro do ex-marido de Susan é mais que um mecanismo conveniente para encher os minutos de “Nocturnal Animals”, ele serve também como um complemento metafórico para o desenvolvimento da protagonista. Não vou negar: o esforço combinado de direção, roteiro e edição é quase uma demonstração de ostentação de talento gratuito. Cada corte entre um arco e outro é tão suave quanto poderia ser. Uma hora cortam no ápice dramático, criando antecipação pelo que foi interrompido; depois usam o som para ligar os dois universos. Quase não há um corte seco nesses paralelos. No entanto, apenas competência técnica não traz resultados positivos automaticamente; não em termos de narrativa, pelo menos. Conforme ambas as tramas progridem, fica claro que uma é metáfora para a outra, representando pela arte do livro sentimentos e acontecimentos reais. O porém é que este processo acontece naturalmente quando dois arcos realmente têm conexão semântica. Com a competência técnica já explicitada, então, não precisaria forçar a barra como acontece aqui; chegando a ser incômodo e excessivo como tentam conectar os pontos às vezes. Os sentimentos de Susan com os de Tony (Jake Gyllenhaal), o protagonista do livro; os de Susan com seu ex-marido; e os do espectador com aquela relação complicada. Basta reparar que o ex-marido e Tony são interpretados pelo mesmo ator para ver para onde as coisas caminham. Funciona muito bem na maior parte do tempo e, felizmente, os excessos pretensiosos são exceção, não regra.
Outro problema é a discrepância de qualidade entre os dois enredos. A atuação mais forte encontra-se na parte de Amy Adams, enquanto a trama mais cativante está dentro do livro que chega pelo correio. Não há dúvidas sobre qual história tem os melhores personagens, tem os momentos mais marcantes e deixa a audiência esperando por mais. É apenas natural que uma seja melhor que a outra em comparação, seja por muito ou por pouco. Em “Nocturnal Animals” fica ainda mais claro pois enquanto uma abraça a narrativa clássica com competência a outra tem uma postura mais contemplativa. E mais, muito da profundidade, das respostas para o conflito de Susan, estão no núcleo de Gyllenhaal, que também conta com um coadjuvante espetacular em Michael Shannon. Elas por elas, fiquei muito mais empolgado e ligado ao que o livro tinha para dizer, desconsiderando um pouco a parte de Susan esparramada pelo chão enquanto lê o rascunho. Ele apresenta começo e fim fortes, ao passo que o recheio é visivelmente menos elaborado que a outra trama, que dificilmente tem momentos chatos.
“Nocturnal Animals” tem acertos impressionantes para um diretor/roteirista que saiu do mundo da moda, especialmente por editar tão bem duas narrativas distintas; ao mesmo tempo que peca por tentar forçar essa conexão sentimental entre elas, que também sofrem de uma diferença notável de qualidade quando colocadas frente a frente. É bem provável que esta obra descole algumas indicações nos próximos meses. Pela atuação incrível de Amy Adams e ainda melhor que em “Arrival“, pelo grande personagem de Michael Shannon, pela direção de Tom Ford e talvez pelo roteiro incomum. Difícil dizer quais serão as vitórias, mas Adams certamente faz por merecer pelo menos a indicação.