O Noir é um gênero abrangente, que vai além de um conjunto de preceitos rígidos e pontualmente definidos. Não é à toa que até hoje existem discussões sobre o que o termo significa; gênero cinematográfico, um movimento ou uma identidade visual característica. Dessas opções, acho que gênero é a que faz mais sentido. Não é a opção mais abrangente nem a mais restritiva, mas uma que possibilita a caracterização do conceito com abertura o bastante para uma expansão da idéia original — como a femme fatale e o detetive particular. “Night and the City” não inova muito, mas serve como um representante perfeito de parte do grande mosaico conceitual chamado Noir.
Harry Fabian (Richard Widmark) é um homem que sonha em ser importante. Ter uma casa pra morar e uma esposa que o ama não chega nem perto de ser o bastante, ele busca uma oportunidade de apostar grande e ganhar grande. Mas sua ambição não é acompanhada de competência, matando seus planos antes de qualquer sinal de sucesso. As coisas sempre dão errado para Harry, coisa que Mary (Gene Tierney), sua mulher, sabe muito bem. Ela só quer que ele se acomode e seja um marido; ele quer mais do que isso e encontra uma oportunidade quando um grande astro da luta greco-romana chega na cidade.
Como dito, “Night and the City” não é um caminhão de novidades. A idéia de alguém ambicioso demais para sua própria saúde já foi vista em “Sweet Smell of Success“, por exemplo, no qual o protagonista busca subir na vida de qualquer jeito. Há uma diferença crítica entre os dois, contudo: Harry Fabian nem chega perto de ser tão detestável como Sidney Falco. Sua ruína surge uma vez após a outra em grande parte por sua própria burrice, não tanto por seus sonhos serem perigosos ou por sua má índole. No fundo, ele é um bom homem que quer sair da mediocridade e fazer um nome para si. Harry é esperto como uma raposa, mas raposas só são uma ameaça quando enfrentam galinhas; num mundo imperdoável e cheio de cães como o do Noir não é o bastante para ter sucesso. Um artista sem arte é como descrevem Harry, muitas idéias sem uma tela em branco para que tenham algum valor. Richard Widmark interpreta o personagem como alguém realmente perdido em tantas possibilidades. Sua confusão não o faz se perder no plano das idéias para torná-lo um sonhador, ele supera essa etapa e traz seus sonhos ao mundo real.
As ferramentas que ele usa? Impulsividade e estupidez. Vale notar que ele não é um completo idiota nem é chamado de artista gratuitamente. Em tanta inexperiência existem traços de talento, ele tem algumas boas idéias e sabe colocá-las em prática. Até certo ponto. É um personagem que foge do estereótipo clássico do fracassado ou do sonhador, sendo um dos grandes atrativos de “Night and the City” por sua tridimensionalidade. É fácil se identificar com ele quando seu conflito é tão bem construído e executado. Em um momento ele é tão perspicaz que até dá a impressão que conseguirá o que quer, sua determinação parece poder mover prédios inteiros; em outro, sua burrice é tamanha que só deixa um sentimento de pena. Widmark faz os dois momentos serem convincentes sem nenhum deixar a desejar quando comparados. Assim surge o suspense sobre seu destino e uma fidedignidade bem apreciada. Afinal, a vida é realmente feita de altos e baixos, qualidades e defeitos.
Enquanto Harry engana meio mundo e tenta convencer a outra metade de que dessa vez as coisas vão dar certo, a cidade não sorri de volta para seus charmes. Para todo esforço seu há meia dúzia de outras forças arrastando-o para o buraco. Quem sabe se o gênero fosse Comédia, Drama ou qualquer outra coisa sua vida daria mais certo, mas este é o Noir. Ninguém tem sucesso, todo erro é punido severamente e a ética é uma palavra que já caiu em desuso. Quem iria querer que o maior malandro de todos conquistasse seu pedaço da cidade? Não depois de tantos golpes, mentiras e empréstimos atrasados. “Night and the City” faz valer o ditado de que uma história só é tão boa quanto seu vilão, ou neste caso, vilões. Não existe uma figura específica para odiar, a maré de azar é representada por mais de uma pessoa. Neste caso, a concorrência é maior até mesmo que os maiores sucessos de Harry, que incluem um personagem icônico interpretado por um não-ator; Stanislaus Zbyszko, um célebre lutador de wrestling no começo do Século 20.
Com integrantes fortes em ambos os lados da balança, o resultado só poderia ser um verdadeiro conflito, uma gangorra de altos e baixos que leva o espectador para um passeio entre o triunfo e o desagradável. “Night and the City” se exalta por ir de uma ponta a outra, construindo um castelo erraticamente apenas para mostrar a fragilidade da glória no Noir. Este não é um lugar onde o esforço é recompensado com satisfação, fato que o roteiro faz questão para esconder essa verdade por tanto tempo. Por fim, depois de um trajeto tumultuado, mas que finalmente aponta para o tão desejado sucesso, as coisas começam a dar errado. Esta obra serve como o exemplo quintessencial de um dos conceitos elementares do gênero: fazer valer a Lei de Murphy. Tudo o que pode dar errado, dará. Planos elaborados com paixão? Esquemas de fortuna rápida? Todos pelo ralo. Não existe respeito por nada do tipo neste filme, que entrega um clímax impactante como poucos conseguem ser, ainda que o final não corresponda em qualidade. Tanto planejamento vai por água abaixo em uma grande cena da mais pura ironia narrativa, quando as vitórias são vazias e carregadas com consequências indesejadas.
Tal é o poder de “Night and the City”, um filme que entrega sua trama nos mesmos passos de seu protagonista. Uma vida de fracassos com ocasionais traços de sucesso é acompanhada de uma história carregada de viradas boas e outras nem tanto, que brincam com as expectativas da audiência apenas para mostrar quão cruel um gênero pode ser.